Dezoito andares

Arquitetura, cidade e políticas da habitação na construção do Edifício Presidente João Pessoa

Eighteen floors: Architecture, City and Housing Policies in the Construction of the Presidente João Pessoa Building

 

Francisco Sales Trajano Filho

Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, Brasil

 

 

Resumo

O artigo investiga a construção do Edifício Presidente João Pessoa, em João Pessoa, estado da Paraíba, Brasil, realizada no âmbito das políticas de provisão habitacional do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), considerando-a desde os processos simultâneos de expansão da área urbana e de verticalização da região central que caracterizam a capital paraibana de meados do século XX. Enlaçar, em uma mesma abordagem, esses distintos vetores de definição da imagem urbana da capital paraibana nesse momento, pretende aguçar a compreensão do lugar ocupado pelo Edifício Presidente João Pessoa em meio às dinâmicas urbanas, sociais e culturais com as quais sua própria realização cruza e tece múltiplos nexos. Ao mesmo tempo, visto como edifício singular, o Edifício Presidente João Pessoa participa do ideário e do exercício plástico-formal da pujante cultura arquitetônica moderna que se forma no Brasil entre os anos 1940 e 1960, no interior da qual inúmeros exemplares produzidos no âmbito das políticas habitacionais implantadas no país desde os anos 1930, a despeito da qualidade de projeto e impacto sobre a paisagem urbana, ficaram por um longo período desprestigiados na historiografia.

Palavras-chave: Edifício Presidente João Pessoa, Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), arquitetura moderna, Brasil

Abstract

The article investigates the construction of the Presidente João Pessoa Building, in João Pessoa, state of Paraíba, Brazil, carried out within the scope of the housing provision policies of the Institute of Retirement and Pensions of Bank Workers (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários, IAPB), considering it from the simultaneous expansion processes the urban area and the verticalization of the central region that characterize the dynamics of the capital of Paraíba in the mid-twentieth century. Linking, in the same approach, these different vectors of definition of the urban image of the capital of Paraíba at that time, is essential in order to sharpen the understanding of the place occupied by Presidente João Pessoa Building amidst the urban, social and cultural dynamics with which its realization itself crosses and weaves multiple nexuses. At the same time, seen as a unique building, the Presidente João Pessoa Building participates in the ideas and the plastic-formal exercise of the thriving modern architectural culture that is formed in Brazil between the 1940s and 1960s, within which numerous examples were produced within the scope of housing policies implemented in the country since the 1930s, that despite the quality of the project and its impact on the urban landscape, were for a long period undervalued in historiography.

Keywords: Presidente João Pessoa Building, Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), modern architecture, Brazil

 



 

Introdução

A construção do Edifício Presidente João Pessoa, pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), na cidade de João Pessoa, estado da Paraíba, entre o final dos anos 1950 e começo da década seguinte, configura um daqueles episódios na história das cidades brasileiras no século XX em que dinâmicas específicas de modernização urbana e políticas de alcance nacional convergem em uma realização densa de sentidos. E isto tanto mais em função das circunstâncias em que se efetiva. Afinal, “terra sem indústria, sem agricultura apreciável, sem atividades extrativas representadas em estatísticas positivas”, conforme notava um arguto observador de época, ao denunciar a natureza do que a imprensa alardeava como o progresso urbano da capital, “uma cidade parasitária” fundada na exploração das “classes menos privilegiadas” (Moreira, 1956, p. 2), a Paraíba ocupava uma posição bastante marginal em termos econômicos e produtivos entre os estados brasileiros. O que, todavia, não a impedia de participar das benesses do nacional-desenvolvimentismo dos anos JK, em que a consumação de uma nação moderna parecia iminente (Mello e Novais, 1998).

Com agudeza crítica incomum para os padrões da imprensa local, tanto mais no jornal oficial do Estado, A União, do qual se torna redator-chefe no momento em que publica o artigo citado, a fala do jornalista Dulcídio Moreira captura muito das contradições que envolveram os processos de urbanização nas cidades brasileiras no curso do século XX, e da capital paraibana em particular. Entremeando em seu território áreas novas e consolidadas, “construções luxuosas e moderníssimas” dispersas nas zonas de expansão em direção ao mar, e uma “progressão geométrica de blocos residenciais” redefinindo a silhueta urbana, em contraponto a um enorme contingente de casas “afundadas na lama e no pó”, nos anos 1950 João Pessoa encetava um novo ciclo de transformação de sua paisagem, prenhe de tensões internas (Moreira, 1956, p. 2).

Precário em seus fundamentos sociais e econômicos, tal ciclo se processaria, simultaneamente, em duas frentes, simbolicamente representadas na “corrida para o mar”, ou seja, na conquista e conversão definitiva em tecido urbano do vasto território entre o que era a cidade propriamente dita –cujo horizonte na década de 1930 se amplia a partir dos melhoramentos no entorno do Parque Sólon de Lucena, configurando uma nova centralidade urbana– e a zona litorânea de Tambaú e adjacências; e a “corrida para o alto”, com o incremento da verticalização do núcleo original de implantação da cidade, disparada a partir do entorno ampliado da Praça Vidal de Negreiros. Crescendo “arquitetonicamente, buscando o mar, aprofundando suas ruas para o interior ou subindo para os céus” (A cidade renovada, 31 de maio de 1956, p. 3), é a simultânea ocorrência desses movimentos de expansão horizontal e vertical que caracteriza o novo ciclo de modernização e transformação que envolve a capital a partir da década de 1950.

Um dos mais emblemáticos produtos desse processo bifronte encenado por uma cidade envolta por expectativas de um progresso de contornos incertos, a história cultural urbana acabaria por atrelar o Edifício Presidente João Pessoa a uma rede de sentidos estendida para além dos limites do campo disciplinar e profissional da arquitetura. Quase desde sua conclusão, no começo da década de 1960, o homem comum, aquele que Henrique Mindlin chama de “crítico da rua” (Mindlin, 1956, p.29), em geral desprovido do instrumental teórico para a apreensão de uma arquitetura hermética aos não-iniciados, tratou de imputar à enorme massa de concreto armado a alcunha de “18 Andares”, nome pelo qual até hoje o Edifício Presidente João Pessoa é mais vulgarmente conhecido, compondo o imaginário urbano e a memória coletiva da capital como um fato urbano poderoso.

Menos que anedótica, a referência à essa recepção popular indicia algumas das tramas imagéticas e discursivas em que a obra se veria enredada, e que, embora não disparadas por sua realização, teriam nela uma componente constante. Isso porque, o Edifício Presidente João Pessoa não era apenas a obra de maior volume de área construída na capital paraibana até aquele momento, e o mais elevado gabarito da cidade. Era, ou assim foi visto, como um ícone inconteste da cobiçada modernidade no Brasil dos “cinquenta anos em cinco” em sua versão local e, ao mesmo tempo, uma afronta aos modos de vida e à cultura do morar de uma cidade em impasse quanto à própria fisionomia ciosamente cultivada da “cidade pacífica e sem pressa”, esparramada à sombra dos flamboyants (Arquitetura, 16 de março de 1957, p. 3), então assediada por profundas transformações. Uma peça fundamental no tabuleiro do imaginário urbano que se projetava quanto à idealização de uma cidade moderna, ou uma nota dissonante impossível de ignorar em uma paisagem dominada ainda pela massiva presença da história acumulada em quase quatro séculos de existência: independente de que visão de cidade se mobilizava, crítica ou aderente aos processos em curso, a construção do Edifício Presidente João Pessoa ressoaria muitas vezes no interior dos embates acerca da cidade, sua imagem e forma de crescimento.

Muito da força dessa obra advém das circunstâncias e elementos que sua iniciativa envolve, pondo em relação frequentemente tensa impulsos díspares, enquanto o edifício ganhava forma e materialidade. Uma notável realização dentre as obras habitacionais produzidas pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões,1 aqui o novo e o antigo, o público e o privado, o geral e o particular, a cidade e o objeto singular compõem as variáveis postas em movimento na conformação de um refinado objeto da arquitetura moderna brasileira dos anos 1950.

Para isto o artigo mobiliza em seu andamento um conjunto variado de informações acerca das ações em matéria de habitação social levadas à cabo na capital paraibana antes e após o início da atuação dos IAPs e outros órgãos afins na cidade, em particular em meados do século XX. Isto, contudo, se faz não com o intuito de analisar de forma mais detida as políticas habitacionais vigentes na capital paraibana. Sem desconhecer a importância e urgência de investigações a respeito, o artigo não se propõe a contribuir, senão de forma limitada, para esta história cuja escrita apenas principia (Cavalcanti, 1999; Gonçalves, Lavieri e Lavieri, 1999; Almeida, 2012). Nem tampouco pretende-se aqui aprofundar-se no denso universo de estudos acerca da habitação social no Brasil (Bonduki, 1998; Bonduki e Koury, 2012; Bonduki e Koury, 2014), um campo de investigação já plenamente estruturado e ao qual nos limitamos a fazer referências pontuais, sempre que o andamento do texto assim requerer.

Se as dinâmicas de expansão urbana e as políticas habitacionais assumem um papel protagônico neste estudo, como de fato o fazem, isto se justifica antes no reconhecimento da centralidade dos nexos entre cidade e arquitetura ao entendimento mesmo de um objeto singular. Adotar tal perspectiva é uma maneira de não incorrer em análises que tendem, amiúde, a limitar seu alcance a pares essenciais (autor/obra), compreendidos autonomamente e dissociados da complexidade de agentes, fatores, impulsos e interesses que atravessam e moldam a experiência da modernidade urbana. De modo semelhante, sem que se descuide de aspectos centrais da trajetória profissional do arquiteto Ulysses Petrônio Burlmaqui, autor do projeto do Edifício Presidente João Pessoa, todo o intento é de situá-lo no âmbito da cultura arquitetônica em que opera, uma construção coletiva alimentada continuamente por contribuições individuais as mais diversas, em contínua e profícua fermentação.

 

Moradias para uma cidade em expansão

“Uma cidade que cresce”, estampava a chamada de um artigo publicado no jornal A União, em maio de 1963. João Pessoa, afirmava o articulista, “tem tomado um grande impulso, não havendo exagero na afirmativa de que é verdadeiramente espantoso o surto de progresso e crescimento” verificado na capital na última década (Uma cidade que cresce, 18 de maio de 1963, p.3). Meia década antes, outro artigo trazia ao público leitor a impressão de um engenheiro local segundo o qual o número de residências da capital havia aumentado em dez vezes desde o final da Segunda Guerra (Crescimento urbano, 21 de fevereiro de 1957). Descontado o evidente exagero, explorado em estimativas repletas de imprecisões hiperbólicas, esses artigos capturam bem o que se constatava no cotidiano de uma cidade com trechos inteiros “quase irreconhecíveis hoje, para quem vem de fora”, dado o ritmo com que “velhos prédios vão caindo, sendo substituídos por edifícios modernos, de linhas alegres e arrojadas” (Progresso da cidade, 16 de março de 1956, p. 3).

A cidade crescendo vai sufocando o casario antigo, os becos, as favelas, os antros. João Pessoa, como as demais cidades do Nordeste, que tende a expandir-se, oferece este aspecto de contraste e análise demoradas por parte de quem a conheceu no passado. (Noronha, 1957, p. 2)

Se na área central isso assumia a forma de um crescimento “para dentro”, com a verticalização do núcleo histórico pressionando a hegemonia de tipologias de até três pavimentos, como veremos adiante, era nas franjas do núcleo urbano consolidado até aquele momento que um crescimento “para fora” adquiria plena potência e visibilidade.

Santa Júlia, nas imediações do eixo de expansão definido pela avenida Epitácio Pessoa, “que era considerado, pela sua situação fora do perímetro urbano, um local pouco propício à moradia”, despontava ao final da década de 1950 entre os bairros mais valorizados por uma crescente população em deslocamento para novas áreas sucessivamente incorporadas à zona urbana desde a década de 1930.

Paragens como Tambauzinho, Miramar, Tambaú, mas também Torrelândia, Macacos e Jaguaribe, de integração recente ou em alteração de perfil urbanístico, determinavam cada vez mais o espraiamento da mancha urbana a leste e sudeste da capital. E embora a ação de empreendedores privados nos termos de uma produção rentista, construtores e investidores de pequeno capital, contribuíssem com a abertura de um ou outro loteamento e a construção de vilas, de modo reiterado, a reboque das iniciativas públicas, coube invariavelmente ao Estado viabilizar a ocupação inicial dessas áreas com a implantação de políticas de habitação para segmentos da classe trabalhadora através de diferentes agências públicas e autarquias.

Bem antes que órgãos como os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) e a Fundação da Casa Popular (FCP) (Bonduki, 1998), coube ao Montepio dos Funcionários do Estado da Paraíba –instituição de cunho previdenciário e assistencialista voltada à provisão de pensões e concessão de empréstimos, estabelecida em 1913– o pioneirismo na construção de habitação social na Paraíba. Embora desde 1912 tenha se constituído na cidade da Paraíba2 uma Sociedade de Benefícios e de Auxílio Mútuos Cooperativa Predial Parahybana, voltada em seus termos de fundação à construção e financiamento de moradias pelos meios legais possíveis, é apenas no começo da década de 1930 e por obra do Montepio que se constroem as primeiras dez unidades residenciais destinadas a seus mutuários, à avenida Walfredo Leal (atual Almirante Barroso), zona de expansão da cidade acima do Parque Sólon de Lucena. Poucos anos depois, no local que logo passa a ser conhecido como bairro do Montepio, o mesmo órgão entrega as trinta e cinco unidades da Vila Macacos, primeiro núcleo de habitação popular da capital, acentuando seu compromisso com o “problema da casa própria” na Paraíba (Nunes, 2009, p. 97).

A Vila Macacos, todavia, só pode ser tomada como habitação popular se contrariar os valores que sua clientela acalentava e as casas construídas manifestavam. Tanto pela tipologia quanto pela qualidade construtiva, as moradias aí erguidas enquadravam-se como casa residencial, nos termos do discurso sustentado nos informes do Montepio. Diferente da casa residencial tipo popular, esta sim para funcionários públicos de ganhos modestos, as casas residenciais, destinadas àquela parcela dos empregados do Estado de maiores proventos, não seguiam standards tipológicos e tinham seus projetos escolhidos previamente por cada futuro morador, levando os empreendimentos a destoarem formalmente da uniformização serial identificada com a arquitetura de conjuntos habitacionais (Nunes, 2009).

Justificada em função de uma maior garantia de retorno financeiro para a instituição por uma clientela mais abastada, a primazia numérica das casas residenciais mantém-se no interior da produção do Montepio entre as décadas de 1930 e 1950. É apenas no final da década de 1940, sob pressão política e ante o início da atuação da Fundação da Casa Popular e dos Institutos de Aposentadoria e Pensões na capital paraibana, que o Montepio, reorganizado como Montepio do Estado da Paraíba, retoma o atendimento de segmentos populares dentro do funcionalismo público, com a produção de unidades menores e de pior qualidade construtiva, distanciando-se do perfil de classe em que havia encerrado o grosso de sua atuação. Vale dizer que das centenas de unidades produzidas pelo Montepio até os anos 1950, apenas pouco mais de cem casas populares foram construídas nas três vilas realizadas pelo órgão entre 1940 e 1950: a Vila 10 de Novembro, erguida no bairro do Montepio, em 1941, e as vilas 11 de Junho e Torrelândia, construídas em 1949 e 1950 (Nunes, 2009).

Nas décadas de 1940 e 1950, em paralelo à ação do Montepio, também diferentes categorias dos Institutos de Aposentadorias e Pensões e a Fundação da Casa Popular passam a municiar o crescimento da cidade no setor sudeste/leste, muitas vezes implantando seus conjuntos em áreas já previamente contempladas com moradias produzidas por aquele órgão estatal ou nas proximidades. No bairro de Jaguaribe, de formação recente e ocupado principalmente por famílias de baixa renda, a partir de 1948 a FCP constrói as poucas mais de cem unidades unifamiliares da Vila Popular, baseadas em tipologias já estabelecidas pelo Departamento de Engenharia do órgão, sem contudo chegar a erguer o total de unidades planejadas em suas duas etapas de implantação, com a segunda lançada apenas em 1953 (Araújo, 2016; Bonduki e Koury, 2014, 2015; Cavalcanti, 1999; Gonçalves, Lavieri, M, Lavieri, J. e Rabay, 1999). 

É também em Jaguaribe que o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Estivadores e Transportes de Cargas (IAPETC), implanta o Núcleo Residencial Ministro José Américo de Almeida, a Vila dos Motoristas, entre 1953 e 1954. Composto por casas unifamiliares situadas com a afastamentos em relação aos limites dos lotes, e de melhor qualidade construtiva comparada com as unidades da Vila Popular, o próprio arranjo das unidades contribuía para conferir uma aparência mais claramente urbana ao conjunto, distanciando-se do aspecto rural característico do empreendimento da FCP, implantado em terreno doado pelo Estado junto à mata do Buraquinho, no limite extremo da periferia (Araújo, 2016).

Assim como decorreu no crescimento da capital a sudeste, a expansão em direção ao mar envolveu também diferentes atores públicos e, em menor medida, privados. No entanto, se naquela direção um caráter errático assomava no processo, dado por certa dispersão das iniciativas, no que diz respeito ao caminho para o mar a marcha expansionista seguiria um percurso claramente definido em seu andamento. Em linha reta entre o núcleo urbano e a praia de Tambaú, os cinco quilômetros de extensão da avenida Epitácio Pessoa, “a artéria que arrasta a cidade para o mar” (Iluminação da avenida Epitácio Pessoa, 31 de dezembro, p.3), aberta ao final do governo Camilo de Holanda (1916-1920), serviriam de norte à implantação de sucessivos empreendimentos habitacionais que já mesmo antes da virada para a década de 1960 ocupavam praticamente a totalidade de uma das margens da avenida.

Seguindo esse eixo e pari passu os melhoramentos executados pelo Estado nessa avenida, o financiamento e construção de moradias para setores da classe média aparecem como ponta de lança no célere processo de ocupação de terras em grande parte devolutas entre a cidade e o mar. Exemplar desse movimento, a implantação do Jardim Miramar, no começo da década de 1950, pela Caixa Econômica Federal, no platô localizado imediatamente antes da descida para Tambaú (Pereira, 2008), condensou um encurtamento ao mesmo tempo real e simbólico entre as duas instâncias que balizava cada vez mais a dinâmica urbana da capital, a cidade e as praias. Pela escala dos lotes e arquitetura das suas primeiras residências, o Jardim Miramar destoava claramente do tipo de assentamento popular que ao mesmo tempo conformava áreas de Torrelândia, Macacos e Jaguaribe, evidenciando o corte de classe que distinguiria os empreendimentos no curso da avenida Epitácio Pessoa. Não é casual, nesse sentido, que industriais, comerciantes, profissionais liberais etc. da capital também aí passassem a estabelecer moradia, como faz o industrial Cassiano Ribeiro Coutinho, que ergue nesse logradouro a moderna residência projetada pelo arquiteto Acácio Gil Borsoi, com jardins do paisagista Roberto Burle Marx.

Com intervenções dispersas e escala variável nos empreendimentos, até o final da década de 1950 diferentes carteiras prediais dos IAPs escolhem as margens da Avenida Epitácio Pessoa para situar seus conjuntos de casas, com o trecho entre o Jardim Miramar e o bairro de Tambiá, no limite de expansão da zona urbana a leste, rapidamente conformando-se como espaço preferencial de moradia de parcela crescente de uma população antes concentrada no adensado arruamento do centro da capital. A meio caminho entre a cidade propriamente dita e a zona costeira, toda essa área, distendida em grande parte sobre o vazio anteriormente destinado ao funcionamento do campo de viação da Imbiribeira, então deslocado para além dos limites do perímetro urbano, tem sua origem ou ocupação inicial induzida pelos investimentos imobiliários dos IAPs. Dessa lavra foram as 230 moradias construídas pelo IAPC (Instituto de Aposentaria e Pensões dos Comerciários) nos Expedicionários, esse “aglomerado de índice demográfico que se avantaja”, em que ao “arrojo da autarquia [IAPC]” seguiram-se “iniciativas particulares” estendidas “ao conjunto através de algumas edificações de bom gosto” (Habitação, 24 de novembro de 1962, p. 3), bem como as 75 unidades levantadas por este mesmo órgão no conjunto Henrique de la Roque, e as 32 casas da Vila Bancária (ou dos Bancários), inauguradas em abril de 1958 pelo IAPB, no Jardim Tambauzinho, quando já estavam em curso as obras do Edifício Presidente João Pessoa (Cavalcanti, 1999; Gonçalves, Lavieri, Lavieri, Rabay, 1999).

Contudo, além de grosso modo restritas em seu alcance a segmentos sociais com vínculos trabalhistas, funcionários públicos do município, estado ou governo federal, as habitações produzidas pelo Montepio, FCP e IAPs, eram pouco expressivas em termos numéricos e decorriam sem “um plano tecnicamente elaborado” a coordenar as diferentes iniciativas, conforme queixava-se um articulista d’A União em meados da década de 1950 (Habitações populares, 26 de setembro de 1956, p. 3). E isso em um cenário de recrudescimento do problema da moradia para uma população em crescimento e majoritariamente fora do mercado de trabalho formal, portanto, excluída dos programas estatais de habitação. Entre 1940 e 1960, João Pessoa passa de uma população de pouco mais de setenta mil habitantes para algo em torno de 135 mil pessoas na virada para os anos 1960, um substancioso aumento que se enraíza, paradoxalmente, na “vertiginosa debacle da economia estadual” decorrente da forte estiagem do começo da década de 1950, cujos reflexos urbanos não tardaram a se fazer visíveis na forma de deslocamentos massivos de migrantes do interior paraibano para as zonas litorâneas e a capital, em particular.

 

Crescer para o alto...

O “prédio mais alto da cidade” em construção (O prédio mais alto da cidade, 31 de janeiro de 1958, p. 3), a reiterada referência à escala do Presidente João Pessoa na imprensa não é casual. Desde o momento em que o governo estadual concedeu o terreno para sua implantação, a informação de que o IAPB pretendia erguer um edifício de vários pisos seria seguidas vezes esgrimida em meio aos embates entre detratores e defensores da verticalização no centro histórico da capital.

Ainda que o debate e as iniciativas voltadas a estimular a verticalização da área central de João Pessoa remontem à década de 1940, e mesmo antes do final dos anos 1950 essa região já contasse com alguns exemplares de edifícios em altura (Chaves, 2008; Pereira, 2009), o início da construção do Presidente João Pessoa inflamaria as opiniões que se batiam quanto ao futuro skyline da capital. Revigoradas, as discussões nesse momento invariavelmente reclamariam uma postura mais ativa do Estado, na expectativa de que o efeito modelar da ação pública instigasse o capital privado a investir na modernização da cidade. Se não tanto a execução de fato de obras públicas de monta, sedes administrativas, edifícios institucionais e afins –o que seria ideal, mas esbarrava na limitação de recursos financeiros do Estado–, o que se cobrava eram ações coordenadas de políticas de incentivo, através da concessão de benefícios e isenções tributárias, a doação direta de terrenos, combinadas ao uso de dispositivos legais que condicionassem a construção na área central a certos parâmetros de gabarito.

Era isso que reivindicava a imprensa ante às obras do Presidente João Pessoa. Argumentava-se que “a boa impressão que o imóvel vem acrescentar ao centro da cidade” justificava a necessidade de uma lei municipal que proibisse “taxativamente a construção de qualquer edifício com menos de 8 andares no Ponto de Cem Réis [Praça Vidal de Negreiros] ou suas adjacências”, a um quarteirão de onde o IAPB erguia seu edifício. Mais do que econômicas, no sentido de um aproveitamento máximo do solo urbano, as razões subjacentes eram, sobretudo, de natureza estética e simbólica: evitar o “efeito urbanístico” desfavorável nascido do “contraste entre arranha-céus e pequenos sobrados”, eliminando assim o risco do Ponto de Cem Réis se tornar uma “rua desconjuntada, incoerente, escoliótica [onde] um prédio sobe, outro desce”; o que poderia dar ao conjunto urbano “a impressão de uma rua banguela com uma arcada dentária desfalcada de alguns dentes” (Novos edifícios, 30 de novembro de 1958, p. 3).

O tema da verticalização do centro, que entrara de vez no debate público com a construção do edifício sede do IPASE (Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado), na virada para a década de 1950, justamente numa das esquinas do Ponto de Cem Réis (Chaves, 2008), passava a ter no Código Municipal de João Pessoa, aprovado em 1955, um aparato legal de regulação, em meio ao empenho por imbuir o planejamento urbano da capital de marcos racionais e técnicos em seu desenvolvimento (Pereira, 2009).

É com base nos parâmetros estabelecidos no código que sucessivas leis aprovadas na câmara municipal tratariam de definir políticas de incentivo à construção de prédios em altura. De 20 de julho de 1956, a lei municipal N. 299 concedia isenção de imposto predial por cinco anos para edifícios com mais de três pavimentos erguidos no interior do perímetro urbano, por um período de dois anos a partir da publicação da lei (Isenção de impostos..., 4 de julho de 1956, p.4; Pereira, 2009). Ao firmar um limite de referência tão baixo, três pavimentos, além de corresponder ao que era o gabarito corrente em boa parte das construções na área central, a lei reconhecia, também, a reduzida capacidade de investimento do capital privado local, a qual procurava se ajustar.

A princípio extensiva em seus efeitos a todo o perímetro urbano, essa legislação seria logo alterada para funcionar de fato como instrumento não mais apenas de incentivo, mas de determinação da verticalização de logradouros específicos da área central. Mais abrangente em sua formulação inicial como projeto de lei, a proposta previa a proibição de edifícios com menos de três pavimentos em diversas ruas, avenidas, praças e adjacências da área central, numa amplitude que seria consideravelmente reduzida quando aprovada na forma da lei municipal N. 440, de 25 de janeiro de 1957 (Pereira, 2009). Com efeito concentrado, a verticalização compulsória determinada por essa lei deixava de fora, entre outros logradouros, a avenida General Osório, a rua Peregrino de Carvalho e o entorno da praça Aristides Lobo, lindeiros ao lote doado pelo governo estadual para o IAPB construir o Presidente João Pessoa (Doado o terreno para a sede..., 17 de fevereiro de 1957, p. 3).

Não era, todavia, sem críticas que o debate público acerca da verticalização se processava. Desde o edifício do IPASE prevalecia uma recepção positiva quanto às benesses da verticalização, ao conferir um “toque de progresso à fisionomia da cidade alta, onde ainda dominam as antigas construções de aspecto provinciano”, numa área que resistia “ao surto inovador da arquitetura moderna” (Chaves, 2008, p. 50). Contudo, certas leituras menos entusiastas também se fizeram presentes na arena de discussão em torno do tema, alertando umas quanto à inadequação ambiental dos edifícios altos em relação à ecologia local –desprezada por edifícios de “fachadas liliputianas, todas fechadas de vidro como se especialmente planejadas para climas glaciais” (Arquitetura, 16 de março1957, p. 3)–, enquanto outras apontavam para a impertinência dessa tipologia em uma cidade com vasto estoque de terras para se expandir horizontalmente, além de destituída de uma correspondente base econômica necessária para custear a infraestrutura requerida pela verticalização.

Frente às características que a capital paraibana ostentava, talvez o melhor fosse “continuar por baixo”, mantendo-se próximo ao ritmo histórico de mudança e às condições de possibilidade de fato existentes, já que “não temos fôlego para subir”, como fizeram Chicago e Nova York, onde tudo “é fácil e abundante” (Arranha-céus, 25 de fevereiro de 1956, p. 3). Ressoariam, também aqui, certas reservas de cunho higienista, atreladas a argumentos de ordem financeira, que permearam a recepção dos edifícios em altura como opção de moradia no Brasil das primeiras décadas do século XX (Vaz, 2002):

Ao planejar sua construção, ninguém pensa nisso e o resultado é transformar-se em verdadeiro inferno a existência dos habitantes dos arranha-céus. Que adianta, realmente, morar num belo edifício se falta o banho diário, se a televisão não funciona ou o elevador emperra por insuficiência de energia, se o fogão não se acende por não haver combustível? (Arranha-céus, 25 de fevereiro de 1956, p. 3)

No outro extremo, o que se reclamava era a aceleração do processo de verticalização que, dada sua “enervante lentidão (...) nem em cem anos se transformará a fisionomia do centro urbano” (O prédio mais alto da cidade, 31 de janeiro de 1958, p. 3). Era preciso estender o efeito transformador na remodelação da cidade inicialmente representado pela construção do edifício do IPASE e outros que o seguiram, em um movimento de contínua ascensão, o qual o Presidente João Pessoa vinha impulsionar sobremaneira ao propiciar “o desaparecimento de um velho pardieiro numa esquina central” e em seu lugar erigir um “edifício de linha moderna e de imponente massa arquitetônica”. (O prédio mais alto da cidade, 31 de janeiro de 1958, p. 3).  

Outras esquinas centrais ainda são ocupadas por casinhas de minguadas proporções, numa demonstração de evidente rotineirismo dos seus proprietários, que deviam ser os primeiros a valorizarem aquelas áreas (...)” (O prédio mais alto da cidade, 31 de janeiro de 1958, p. 3)

“Crescer para o alto”, e rápido, superando continuamente os marcos do passado em favor de novas alturas, numa voragem alimentada pelas miragens que a modernização urbana não cessava de projetar. Em 1963, com as obras do Presidente João Pessoa próximas da conclusão, o IPASE, que constituíra “motivo de orgulho”, já era “olhado com desprezo” ante o feito arquitetônico do IAPB, cuja escala “havia deixado muito para baixo o motivo de vaidade de até então”. Igual fim, no entanto, já se reservava ao mesmo edifício diante do andamento das obras da sede da reitoria da Universidade da Paraíba, projeto do arquiteto Leonardo Stuckert Fialho, nas imediações do Parque Sólon de Lucena, já considerado pela imprensa um “novo motivo de satisfação para os que desejam uma transformação urbanística do ponto de vista arquitetônico” (Crescer para cima, 5 de março de 1963, p.3).

 

O edifício, a cidade e o arquiteto

Informações desencontradas veiculadas pela imprensa envolveram a história do Edifício Presidente João Pessoa desde o momento em que se tornou público o interesse do IAPB em construir uma sede para sua delegacia regional na capital paraibana. Invariavelmente impregnadas de entusiasmo, as notas que circulavam nos jornais da capital abundavam em imprecisões quanto ao programa e, sobretudo, quanto ao gabarito do edifício.

Numa das primeiras notícias a respeito, O Norte divulgava a assinatura do decreto pelo governador Flávio Ribeiro Coutinho oficializando a doação, mediante convênio, do terreno na esquina da avenida General Osório com a rua Peregrino de Carvalho, para o IAPB construir um edifício que “está planejado para oito andares” (Doação de terreno, 4 de dezembro de 1958, p. 2). Tanto o número de pavimentos quanto as características do programa seriam objeto de contínua especulação enquanto os detalhes do projeto permaneciam desconhecidos. Ora aparecendo com oito, dez, doze, dezesseis e dezessete, mas, estranhamente, raramente com dezoito pavimentos, mesmo com as obras prestes à conclusão, ora indicado apenas como sede administrativa e, posteriormente, apresentado acrescido de serviços ambulatoriais e sociais e, por fim, residencial.

É certo que, em parte, os erros de percepção em relação à escala do projeto devem-se à peculiar topografia do sítio em que se implantaria, de acentuado declive na direção das praças Aristides Lobo e Pedro Américo, em trecho até o começo do século XX conhecido como Ladeira da Carioca, então incorporada à rua Peregrino de Carvalho.

Porém, na própria Revista dos Bancários, órgão informativo do IAPB, em que são publicadas fotografias da maquete do projeto final, constam informações díspares. Em artigo sobre a futura sede na capital, em que se comentava também a negociação com a prefeitura da cidade de Campina Grande, no interior do estado, para construção, jamais efetivada, do “Edifício Presidente Getúlio Vargas”, o Edifício Presidente João Pessoa, ao ser esmiuçado em seu programa, aparece indicado com “16 pavimentos que abrigarão serviços e residências”, compreendendo “a maior área, num total de 8.500,00 m2, constituindo, igualmente, o mais elevado gabarito da cidade” (A futura sede do I.A.P.B. em João Pessoa, 1958, p. 16).

 


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Figura 1. Fotografia do início do século XX mostrando a ladeira da Carioca (atual rua Peregrino de Carvalho). No alto da subida dessa ladeira, à direita na fotografia, será construído o Presidente João Pessoa. Acervo Walfredo Rodriguez, sem data.

 

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Figura 2. Foto aérea do centro da cidade de João Pessoa na década de 1940, com o lugar de construção do Edifício Presidente João Pessoa indicado. Acervo Humberto Nóbrega.

 


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Figura 3 e 4. Fotografias da maquete do Edifício Presidente João Pessoa. A futura sede do I.A.P.B. em João Pessoa, 1958, p. 18.

 


Insistir nos dados quantitativos relativos à obra não é gratuito, nem pouco importante. Não só porque essa informação tem enorme ressonância na esfera pública e grande pregnância no interior dos processos de modernização e no imaginário urbano, mas em particular aqui pela função que ocupa como marcos essenciais na definição da autoimagem buscada pelo IAPB, algo que envolvia estabelecer sutis diferenças em relação ao perfil de outros institutos de aposentadorias e pensões. No que se pode reconhecer como elementos constitutivos de uma espécie de estratégia de distinção, o IAPB priorizava a implantação de seus empreendimentos em áreas centrais e pontos privilegiados e de grande visibilidade, em especial com edifícios residenciais verticais, tipologia preferencial embora não exclusiva na produção da autarquia (Bonduki, 1998), como se constata mesmo em João Pessoa, na Vila dos Bancários, no Jardim Tambauzinho, formada por casas unifamiliares.

Com obras de porte em capitais e cidades médias país afora, muitas vezes notáveis considerando-se os contextos de inserção, em empreendimentos voltados a uma clientela de maior poder aquisitivo dentre as categorias atendidas pelas políticas habitacionais dos IAPs –os bancários, constituíam, de fato, um segmento de maior renda no interior do funcionalismo público à época–, um viés de classe parece permear as realizações arquitetônicas do IAPB. Esse perfil de associados criava condições favoráveis também em termos de resposta às demandas habitacionais do IAPB, com rebatimentos diretos seja na localização dos edifícios e padrão construtivo e de conforto, seja na opção tipológica prioritária e escolha dos profissionais para seus projetos.

Tanto os IAPs como a Fundação da Casa Popular mantinham em seus quadros departamentos, divisões ou setores de engenharia e arquitetura responsáveis pela concepção dos projetos de cada autarquia, algumas das quais dirigidas por arquitetos proeminentes na cultura arquitetônica moderna brasileira das décadas de 1940 e 1950. Carlos Frederico Ferreira, por exemplo, tornou-se chefe do setor de Arquitetura e Desenho do IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários), após ser contratado como engenheiro arquiteto em 1939, sendo autor dos projetos dos conjuntos residenciais do Realengo, no Rio de Janeiro, e Vila Guiomar, em Santo André/SP, e outros. A despeito da existência de uma estrutura de projeto própria em cada autarquia, a contratação de arquitetos externos ao corpo técnico não era uma prática inusual. Arquitetos como Attílio Corrêa Lima, Paulo Antunes Ribeiro, Eduardo Knesse de Melo, Carlos Henrique Porto, entre outros, realizaram projetos para diferentes IAPs, alguns dos mais notórios talvez sejam o conjunto residencial da Baixada do Carmo, de Corrêa Lima, e o conjunto residencial Armando de Arruda Pereira (Japurá), de Knesse de Melo, ambos para o IAPI, em São Paulo (Bonduki, 1998).

A centralidade da inserção urbana, a adoção de um modelo vertical para moradia, combinadas à qualidade dos espaços, mesmo em um lote tão constrito, constituem características que deixam manifesta a conformidade do Edifício Presidente João Pessoa à política de projeto consolidada no âmbito do IAPB nos anos 1950 (Bonduki e Koury, 2014).

Embora não sejam claras as razões que levaram o IAPB a contratar o arquiteto carioca Ulysses Petrônio Burlamaqui (1925-1998) para realizar o projeto do Edifício Presidente João Pessoa, tal escolha, contudo, não parece fortuita. Por certo como estagiário, Burlamaqui comparece listado em meio aos profissionais e técnicos da Divisão de Engenharia do IAPI responsável pelo projeto do conjunto residencial da Penha, Rio de Janeiro, de 1947 (Timm, 2015). Por sua vez, vínculos pessoais e profissionais com outros arquitetos que atuavam ou atuaram executando projetos para os IAPs e FCP não podem ser desprezados. Flávio Marinho Rêgo, contemporâneo de Burlamaqui na Faculdade Nacional de Arquitetura (FNA), na Universidade do Brasil, é o autor do projeto do monumental conjunto residencial Presidente Getúlio Vargas (Deodoro), realizado para a Fundação da Casa Popular no início da década de 1950 (Bonduki e Koury, 2014).

Tal como Flávio Marinho Rêgo, e de forma semelhante a Marcos Konder e Acácio Gil Borsoi, Burlamaqui compõe parte das primeiras levas de arquitetos egressos da FNA que iniciaram sua atuação profissional em um contexto de franca rotinização dos procedimentos plástico-formais da já internacionalmente afamada arquitetura da “escola carioca”. Um “niemeyeriano” rigoroso quando estudante da FNA, reconhecido pela fidelidade extrema com que copiava o original3, a desenvoltura de Burlamaqui com o vocabulário em consolidação da moderna arquitetura brasileira é patente no projeto para a residência Jerônimo Leal, de 1950, mesmo ano de sua formatura, exibido na I Exposição Internacional de Arquitetura da I Bienal Internacional de Arte de São Paulo (1951), quando já ocupava o cargo de professor de Planejamento de Arquitetura na FNA.4

Listado também entre os mais de sessenta arquitetos e urbanistas brasileiros inscritos no concurso para Brasília, no mesmo ano de 1957 em que executa o projeto para o Edifício Presidente João Pessoa, tantas credenciais não deixariam de ser notadas e um tanto realçadas pela imprensa local, ao apresentar Burlamaqui como “um dos mais destacados arquitetos brasileiros, figurando sem favor nenhum, entre Oscar Niemeyer, Mindlin, Irmãos Roberto e outros responsáveis pelo progresso da arquitetura brasileira, considerada, hoje, como uma das mais evoluídas do mundo” (A construção “10 andares”..., 25 de outubro de 1957, p. 4).

Ao prefaciar Modern Architecture in Brazil (1956), de Mindlin, o historiador de arquitetura e eterno secretário-geral dos CIAM Sigfried Giedion (1888-1968) ressalta o vigor e a qualidade da cultura arquitetônica moderna no país. Para o crítico e historiador suíço, longe de ser atributo apenas de algumas “individualidades excepcionais”, tais atributos se notam igualmente “no nível médio da produção arquitetônica”. Ausente na maioria dos outros países, esse traço peculiar se manifestaria, por exemplo, na capacidade dos arquitetos brasileiros de “resolver diversos problemas de um programa complexo com uma planta baixa simples e concisa e cortes claros e inteligentes” (Giedion, 1956, p. 17).

A observação de Giedion é oportuna ao entendimento do empenho de Burlamaqui em conciliar programas, demandas, públicos e usos distintos em uma forma arquitetônica final ao mesmo tempo esmerada e simples. De tal modo que a organização geral em dois blocos claramente marcados, cada um dotado de individualidade formal e expressiva, em nada deixa transparecer a complexa negociação levada a cabo, em especial no bloco horizontal.

É de fato no bloco horizontal que a habilidade do arquiteto em obter uma solução eficiente e clara no manuseio de um intricado conjunto de variáveis funcionais se exibe com desembaraço. Nesse volume concentra-se a face propriamente pública do projeto, embora fosse antes apropriado falar no plural, dada a diversidade de solicitações de natureza pública subsumida em seu interior. Afinal, além de todo o aparato da delegacia regional do IAPB e a sede do Sindicado dos Bancários, com espaços administrativos e de lazer, no bloco horizontal estaria abrigada uma completa estrutura ambulatorial e de atendimento médico, com salas de consulta e de especialidades, enfermagem, laboratórios, raio X e suporte farmacêutico. E, em decorrência do convênio com o governo estadual, por ocasião da doação do terreno ao IAPB, a Escola de Música Anthenor Navarro, cuja construção foi demolida para dar lugar ao Presidente João Pessoa, seria também alojada neste bloco, transformada em um conservatório de música, com salas individuais, para grupos e auditório para 150 pessoas, entre outras dependências.

Tão distintas solicitações programáticas acabariam por encontrar na peculiar topografia do lote urbano, de acentuado declive, entre a avenida General Osório e a Praça Aristides Lobo, formas sugestivas de aproveitamento, com cada grande grupo funcional (delegacia, sindicato, ambulatório e conservatório), organizando-se do primeiro ao quarto pavimento, respectivamente. Assim, junto à praça Aristides Lobo, no ponto de maior declive, é definido o acesso à delegacia regional do IAPB; à meia altura da subida para a avenida General Osório, no segundo pavimento, a entrada para o sindicato; e na face leste os acessos comuns para o ambulatório, disposto no terceiro pavimento; conservatório, no quarto pavimento; e para o bloco residencial. Essa solução de convergência de fluxos, embora coerente do ponto de vista do projeto, não tardaria a se mostrar confusa e indesejável quando da ocupação definitiva do edifício.5

Em vista de tal demanda, o bloco horizontal assume um aspecto volumoso, acentuado ainda por sua disposição nos limites do lote. Situação em toda propícia a respostas temerárias nas mãos de arquitetos menos talentosos, o perigo da rigidez, da qual os arquitetos brasileiros tão habilmente conseguiam escapar, conforme Giedion, e o risco de uma massividade opressiva, iminentes neste caso, são, contudo, contornados por Burlamaqui ao lançar mão de estratégias projetuais e dispositivos de natureza plástica na definição do envoltório já característicos da arquitetura moderna brasileira. O recurso a elementos emblemáticos como o brise-soleil vertical de alumínio na frente para a praça Aristides Lobo, e o panejamento de elementos vazados cerâmicos, com janelas emolduradas regularmente distribuídas na altura do terceiro e quarto pavimentos, na fachada para a rua Peregrino de Carvalho, conferem transparência ali onde a opacidade poderia se impor.

A sobreposição de programas de natureza pública e privada em um mesmo edifício não é estranha à produção do IAPB na década de 1950. Pelo contrário, foi explorada em projetos realizados pela Divisão de Engenharia da autarquia, como no IAPB de Barretos/SP, e naqueles contratados com arquitetos externos ao quadro técnico do órgão, nos exemplos do IAPB de Ribeirão Preto/SP, projeto de Oswaldo Corrêa Gonçalves, Rubens Carneiro Vianna e Ricardo Sievers, e no de Ponte Nova/MG, do arquiteto Abílio Marques Cardozo Filho, ambos de 1958 (Bonduki e Koury, 2014). Se em parte a conjugação de serviços e moradia explica a prioridade do instituto em implantar seus edifícios em áreas centrais, de acesso facilitado a seus associados, no mesmo sentido pode-se identificá-la como um fator de indução à verticalização das soluções.

Sem adotar o mesmo partido destes últimos edifícios, em que a diversidade de usos praticamente subsome em volumes coesos e quase monolíticos, apenas com marcações sutis sinalizando a coexistência de programas distintos, no Presidente João Pessoa sobressai a estrita separação entre público, no bloco horizontal, e privado, na lâmina vertical, com corpos formal e funcionalmente autônomos. Um pavimento inteiramente livre, o quinto, ocupado apenas pelos maciços pilares de seção retangular que suportam o volume residencial, acentua a independência entre os blocos. A um só tempo térreo e terraço do bloco vertical, nesse pavimento vazado um playground se dispõe no espaço para uso dos moradores.6

Erguido sobre essa base de pilares, o bloco residencial também seria objeto de especulações quanto ao número de unidades que abrigaria até bem próximo ao início da construção. Um tanto à mercê da indefinição do gabarito, a lâmina vertical aparece com dez pavimentos e sessenta apartamentos em uma perspectiva de 1957 publicada no jornal O Norte. Tal proposta, contudo, não é levada adiante, e a solução por fim definida apresenta o bloco residencial recuado em relação aos limites do bloco institucional, e o número de apartamentos reduzido a quarenta e oito unidades. Outra mudança evidente, frente à horizontalidade e à impressão de peso que pareciam prevalecer na perspectiva, é a ênfase na verticalidade do conjunto, com o acréscimo de dois pavimentos ao bloco residencial.

Além de conferir uma feição mais propriamente laminar, essa opção acentua as condições favoráveis de ventilação e insolação para os apartamentos. Organizados de forma encadeada e em pares, com sistemas de circulação vertical autônomos e formalmente destacados na fachada sul, os apartamentos não destoavam em termos de programa e área do que era corrente na produção de habitação multifamiliar do IAPB, com unidades de três e dois quartos, ambos providos de quarto e banheiro independentes para empregada doméstica.

Livre de muitas das constrições impostas pelo lote e da intensa solicitação programática do bloco horizontal, a lâmina residencial toma esse bloco à maneira de uma plataforma, um pedestal, mais precisamente, a partir do qual a moderna máquina de morar sobrepuja o casario do entorno e sua forma de morar, em uma atitude simbólica das mudanças em curso nos modos de habitar e viver na cidade.

Posto nessa condição elevada, pairando sobre a paisagem urbana, um senso de monumentalidade impregna o volume, a despeito mesmo das intenções do projeto. Assumindo que a monumentalidade opera de modo subjacente a essas intenções, ela o faz esquivando-se do que historicamente associou-se à ideia de monumento e aos aspectos formais e materiais correspondentes, e em consonância com o andamento mais geral do debate internacional na arquitetura em torno do tema nas décadas de 1940 e 1950.

Em particular, cabe apontar aqui o quanto a solução alcançada por Burlamaqui em João Pessoa deve às lições extraídas do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), de Lucio Costa e equipe, em que se conciliam demandas funcionais e simbólicas na materialização original de um monumento moderno. Em ambas as situações, a estratégia implicava na corrosão dos atributos tradicionalmente identificados ao monumento na produção de uma acepção nova e distinta de monumento, um monumento em si anti-monumental. Se, como mostra a história, o peso, a densidade e a opacidade foram recorrentemente exploradas em favor da imponência simbólica, esmaecida essa busca de simbolismo por uma arquitetura que se pretendia avessa ao significado mais explícito, na modernidade e com meios contemporâneos o sentido monumental ganha visibilidade expressiva na forma de elogio à potencialidade plástica dos novos materiais e possibilidades construtivas que conduzem a arquitetura à desmaterialização, à perda de peso e à transparência.

A exibição clara e precisa do papel desempenhado por cada elemento e material, a distinção entre estrutura e vedo, o cultivo da superfície planar e da linearidade, presentes no MESP, assim como no Edifício Presidente João Pessoa, legam um efeito de leveza formal a esses edifícios. No último, em especial, esse efeito é acentuado por meio da redução da fachada norte, voltada para a rua Peregrino de Carvalho, a uma grelha abstrata de linhas ortogonais obtida com o recuo dos espaços internos dos apartamentos e a criação de varandas ao longo de toda a extensão das quarenta e oito unidades. Por sua vez, na fachada sul, Burlamaqui trabalha com os elementos vazados cerâmicos usados no bloco horizontal no desenho de planos permeáveis ao vento e ao sol nos espaços dos apartamentos destinados às áreas de serviço.

No geral como nos detalhes, são abundantes os vínculos de pertencimento da obra ao universo formal que os colegas cariocas de Burlamaqui vinham elaborando desde os anos 1930, com ecos dessa linguagem ressoando por toda parte. Entusiasta da arquitetura de formas livres de Niemeyer quando estudante, é, no entanto, a outra figura do panteão carioca que Burlamaqui mais se aproxima nesta obra. Em detrimento da gestualidade formal niemeyeriana, é à pesquisa plástica não menos rica e sistemática de Affonso Eduardo Reidy (1909-1964) que o projeto do Edifício Presidente João Pessoa presta reverência.

 


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Figura 5. Vista do Edifício Presidente João Pessoa desde a região do Varadouro, centro histórico da capital paraibana, com a fachada norte da lâmina residencial sobre a base criada pelo bloco institucional horizontal, final da década de 1960. Acervo Humberto Nóbrega.

 

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Figura 6. A fachada sul do Presidente João Pessoa, com seus painéis de elementos vazados cerâmicos, e o entorno em verticalização do centro da capital paraibana, final da década de 1960. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE.


 


Presente, entre outros pontos, no desenho das aberturas com cercaduras marcadas contra o pano de fundo dos elementos vazados cerâmicos da superfície envoltória do bloco horizontal, alusivo à solução trabalhada por Reidy no volume serpenteante do conjunto Pedregulho (1946-1952) –também encontrado, é preciso lembrar, nos edifícios do Parque Guinle (1948-1954), de Lucio Costa (1902-1998)– a referência à obra de Reidy no Presidente João Pessoa torna-se praticamente uma citação na maneira como Burlamaqui arremata o topo da lâmina vertical. Aqui, a sequência de abóbadas e laje plana que conforma o volume da residência do zelador é praticamente uma colagem, pouco alterada, da elegante estrutura concebida por Reidy, em parceria com Jorge Machado Moreira (1904-1992), para a segunda versão do projeto ganhador do concurso para a sede da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), de 1944. (Conduru, 2005).

Entre Niemeyer e Reidy, os principais form-givers da arquitetura moderna brasileira, Burlamaqui parece orientar sua obra no sentido da busca de pertencimento ao que nos anos 1950, dentro e fora do país, havia de mais refinado e vigoroso na produção arquitetônica mundial. Impregnando-se, assim, do “ar de família” comum à arquitetura da escola carioca, explorando a riqueza potencial do vocabulário de matriz corbusiana em contínuo desenvolvimento. Uma seara ao mesmo tempo fascinante e prenhe de riscos de um formalismo fácil em suas possibilidades.

Essa mesma busca de pertencimento, traduzida numa adesão sem mais ao mundo das formas e, também, à ideologia, da escola carioca, cuja base, não é demais lembrar, assenta-se no Le Corbusier purista dos anos 1920, explica o profundo senso de autonomia plástica do objeto arquitetônico frente à cidade imediata na qual se instaura. De ruptura, de fato, entre a arquitetura e a cidade real historicamente constituída, a atestar a receptividade de Burlamaqui ao discurso do Movimento Moderno.

No caso da implantação do Edifício Presidente João Pessoa isso implicou na completa desconsideração do tecido urbano adjacente que se acumulara e se transformara, sem mudanças abruptas ou radicais, ao longo de quase quatrocentos anos. Afinal, o lote ocupado pelo Presidente João Pessoa não estava apenas no centro da área histórica da capital paraibana, mas tinha seus limites leste/oeste definidos por dois dos mais antigos eixos de estruturação urbana da cidade: a rua Nova, ou seja, a avenida General Osório, estendida sobre a colina de fundação da cidade desde seus primórdios, e no outro extremo, limítrofe à praça Aristides Lobo, o que no final do século XVII foi registrado em mapa pelo Capitão Manuel Francisco Grangeiro como a “estrada ou caminho do carro para a cidade e da cidade para o Varadouro”, origem da rua da Areia, cujo eixo de continuidade delimita uma das faces do quarteirão triangular complementado pela avenida General Osório e rua Peregrino de Carvalho.

Sabe-se com certeza que Burlamaqui esteve ao menos uma vez na capital paraibana, ocasião em que deu entrevista à imprensa esmiuçando detalhes do projeto e saciando a curiosidade pública que rondava a obra desde seu anúncio. É improvável que em tal circunstância ele não tenha tomado contato com o sítio já definido para implantação do edifício. De modo que a abstração da dimensão histórica não é produto do desconhecimento das variáveis concretas que envolviam a área do projeto. Tanto assim que, embora despreze o dado histórico, Burlamaqui mostrou-se, por outro lado, extremamente sensível ao risco de insolação excessiva sobre o bloco habitacional, evitado com a sutil rotação deste volume em relação ao bloco horizontal.

Com ganhos evidentes em conforto ambiental para os apartamentos, essa ação, considerada de outro ponto de vista, revela o quanto a solução buscada é tributária do manuseio daquelas matérias-primas do urbanismo moderno, segundo Le Corbusier, o sol, o espaço e o verde, e seu poder determinante sobre o projeto. Como adverte a versão corbusiana da Carta de Atenas, “é preciso nunca esquecer que o sol comanda, impondo sua lei a todo empreendimento cujo objeto seja a salvaguarda do ser humano” (Le Corbusier, 1941, s.p).

Nenhum outro registro denuncia mais o compromisso da arquitetura de Burlamaqui à ideologia de projeto do Movimento Moderno e ao “comando” do sol sobre o objeto arquitetônico, do que a perspectiva do Presidente João Pessoa citada anteriormente. Sem reincidir sobre as diferenças entre a versão apresentada na perspectiva e o que foi enfim realizado, salta aos olhos nesse registro não tanto apenas a ausência da história, mas a ausência da própria cidade como artefato construído. Retirada do tempo, desvencilhada do seu passado assim como da sua geografia, esse verdadeiro exercício imaginativo retrata a capital paraibana em meio a uma natureza luxuriante, com o verde imiscuindo-se por toda parte, com a massa urbana reduzida em sua configuração a uns poucos volumes cúbicos genéricos desprovidos de qualquer traço que facultasse sua identificação com alguma edificação existente. Como fecho, uma fantasiosa cadeia de montanhas domina a paisagem ao fundo, evocando antes o cenário natural do Rio de Janeiro, familiar ao carioca Burlamaqui, do que a geografia física da capital paraibana e seu território.

Hegemônica entre os arquitetos modernos brasileiros de meados do século XX, essa ideologia de projeto manteria uma autoridade duradoura e incontestável na cultura arquitetônica local por décadas ainda. Observada aqui à escala do objeto arquitetônico isolado, no mesmo período ela norteava a construção ex nihilo da nova capital federal. Posto em perspectiva internacional, o prestígio da ideologia do Movimento Moderno entre os arquitetos brasileiros contrastava fortemente com o tensionamento e crítica de seus pressupostos

, instrumentos e práticas no âmbito dos debates promovidos nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) nos anos 1950, em um processo de revisão interna que não tardaria a corroer os princípios mais caros e conduzir a dissolução do próprio CIAM como instituição e câmara de ressonância do debate moderno em arquitetura e urbanismo.

A investigação de estratégias de pertencimento e de apropriação da rua como lugar concreto de construção de novas sociabilidades, o diálogo com a cidade real e a cultura urbana, a proximidade com as expectativas do homem comum, tudo isso passava ao largo das preocupações dos arquitetos brasileiros. Não há paralelo, no Brasil, com a tentativa posta em curso por alguns arquitetos europeus, de negociação com a história e a cultura como subsídio à prática arquitetônica. Na verdade, um verdadeiro abismo conceitual separava o modus operandi vigente entre os brasileiros e o chamamento de um Ernesto Nathan Rogers, do escritório milanês BBPR, responsável pela Torre Velasca (1954-1958), para que os arquitetos enquadrassem os seus “trabalhos nos ambientes próprios, sejam eles naturais ou criados historicamente pelo gênio humano” (Rogers, 1960, p. 21), fundamento da defesa das pré-existências ambientais e sua validade no ato projetual.


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Figura 7. Perspectiva de 1957 do projeto do Edifício Presidente João Pessoa. Carteira predial do IAPB 26 de outubro de 1957). O Norte, p. 1.

 

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Figuras 8 e 9. O Edifício Presidente João Pessoa em seu estado atual. Acervo do autor.

 


Sem ser estranha à cultura arquitetônica brasileira, a abstração da paisagem histórica e a prioridade conferida ao edifício como objeto individualmente considerado representavam procedimentos padrões, entranhados na visão norteadora do fazer arquitetônico. De outro ponto de vista, a pouca permissividade dos brasileiros a muitos dos tópicos centrais ao debate internacional do período dão conta do estado de uma cultura arquitetônica amadurecida e pouco transigente ao caráter novidadeiro de certas ideias. Deixa entrever, entretanto, os riscos de uma arquitetura demasiada autocentrada, autorreferente e inflexível a mudanças estruturantes que então solapavam os princípios sobre os quais se fundara, resistindo a escrutínios críticos que punham sob suspeição suas próprias premissas.

 

Conclusão

Anunciado “em fase final de conclusão” (I.A.P.B., 7 de maio de 1960, p. 3), em meados de 1960, a construção do Edifício Presidente João Pessoa, contudo, passaria por vários entraves até o término. Dois anos depois, noticia-se o interesse da delegacia regional do IAPB em se instalar no bloco institucional no começo de 1963, com as obras do bloco residencial aparentemente ainda em curso (Delegacia do I.A.P.B., 15 de junho de 1962, p. 8). Em dezembro do mesmo ano, a imprensa divulga a iniciativa de um esforço de entidades de classe e associações para pressionar a presidência do IAPB para levar a termo os trabalhos de construção, paralisados havia sete meses por falta de verbas. (Conclusão do prédio do I.A.P.B.,16 de dezembro de 1962, p. 3). Difícil saber, no entanto, a eficácia imediata dessa ação, já que apenas três anos depois o conjunto das instalações do Edifício Presidente João Pessoa seria inaugurado, com as vendas dos apartamentos aos associados cadastrados no Sindicato dos Bancários autorizadas somente em meados de 1966.

Para além da falta de verba, alegada como razão do atraso das obras, o fato da ocupação dos apartamentos se dar apenas no final da década talvez tenha mais a ver com a abrupta mudança do cenário político nacional imposta pelo golpe militar de 31 de março de 1964. Em particular para a questão da habitação social, a instauração da ditadura foi logo seguida por profundos rearranjos institucionais, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), instância de centralização das operações financeiras do Plano Nacional de Habitação (PNH), implantado em agosto desse ano. Dois anos depois, é criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que passou a reunir todos os institutos previdenciários então existentes, levando à imediata extinção dos IAPs em novembro de 1966. As consequências dessas mudanças para a produção de moradias no Brasil logo assumiriam a forma de imensos conjuntos habitacionais operando como impulsores de um padrão periférico de expansão, muitas vezes dissociados dos tecidos urbanos constituídos, e com uma queda sensível da qualidade arquitetônico do projeto. De tal modo que realizações semelhantes ao Edifício Presidente João Pessoa seriam praticamente inviabilizadas no âmbito da atuação do BNH.

É possível que um “vácuo institucional”, na transição da gestão dos IAPs para o BNH, tenha gerado dificuldades à ocupação dos apartamentos pelos futuros moradores. Alguns desses, em seus depoimentos ao autor, evocam em suas memórias situações atribuladas vivenciadas por suas famílias em meio às expectativas de mudança para a nova moradia, com informações equivocadas repassadas pelos agentes públicos responsáveis, com certo ar de urgência alternando-se a períodos de notícias rarefeitas a respeito.

Ocupados, os apartamentos do Edifício Presidente João Pessoa seriam palco de sucessivos desencontros entre os hábitos de uma população acostumada a modos de morar típicos de residências unifamiliares, com seus quintais e jardins como espaços expandidos da casa, e práticas tradicionais de vivência e vizinhança profundamente arraigados, e as necessidades impostas por normativas de vida em condomínio em unidades multifamiliares, bem mais restritivas nas formas de apropriação e uso dos espaços. A despeito dos inevitáveis choques iniciais entre duas culturas de modo de vida distintas, o que se constatou, pelos depoimentos, foi o surgimento de uma série de arranjos intermediários, artifícios de transgressão e subversões dos espaços e suas destinações que subtraiam o rigor das normatizações sem ignorá-las por completo. Esses aspectos parecem caracterizar os processos de negociação entre distintas formas de morar, onde


moradores instalados em edifícios modernos e verticais trazem consigo, e buscam acomodar aos novos espaços, uma série de práticas já consolidadas em seu cotidiano anterior, em moradias unifamiliares, urbanas e suburbanas. As ações nesse sentido constituem certamente uma das possibilidades de pesquisa a se explorar, assim como o acúmulo de memórias coletivas e individuais das pessoas que passaram por esses processos, algo que apenas recentemente passou a receber a atenção dos pesquisadores da história da habitação social no Brasil (Nascimento, 2017).

 

Agradecimento

A produção deste artigo contou com o auxílio de vários amigos pesquisadores e novos conhecidos, através do empréstimo de material, compartilhamento de dados de pesquisas pessoais e entrevistas informais. A Carolina Chaves, Fúlvio Teixeira, Maria Berthilde Moura Filha, Mariana Bonates, Matheus Bertoni, Rossana Honorato e Wylnna Vidal devo conversas e empréstimos providenciais de suas pesquisas pessoais. A Ana Lúcia Barros, Ladjane Rodrigues e Luciano Klostermann, moradores do Edifício Presidente João Pessoa, agradeço por me receberem e compartilharem suas memórias e vivências no “18 andares”; assim como ao síndico, Francisco Nilton Leite, pelo acesso às instalações e ao material gráfico do edifício. A que ressaltar que parte da pesquisa que embasou este artigo foi possível graças a uma bolsa de pós-doutorado no âmbito do PNPD-CAPES, realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB, entre 2018 e 2019, ao qual sou muito grato.

 

Notas


1 Sobre a política habitacional no Brasil e as ações promovidas pelas diferentes esferas administrativas voltadas ao problema da moradia no Brasil, como os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) e Fundação da Casa Popular (FCP), entre outros órgãos, consultar Bonduki, 1998 e Bonduki e Koury, 2014. Sobre a questão habitacional na região nordeste do Brasil, onde se situa o estado da Paraíba, assim como a ação dos IAPS nessa região, ver Almeida (2012).

2 Até 1930, a capital paraibana se chamava Paraíba, assim como o estado.

3Na minha turma tinham três alunos que se destacavam que eram o Flávio Marinho Rego, meu grande amigo de projetos e de noitadas, o Ulisses Burlamaqui, que era uma figura muito engraçada porque era todo “certinho”, todo almofadinha, e era ótimo em apresentação de projetos e eu. O Ulisses era conhecido tanto porque caprichava muito nas suas apresentações da faculdade com maquetes muito bem-feitas e também pelo fato de copiar nitidamente as ideias do Oscar Niemeyer. Tem até uma história engraçada do Ulisses. Por ocasião de uma exposição que organizamos pelo NEDAB (Núcleo de Estudos e Divulgação da Arquitetura Brasileira) que foi um órgão criado pelos alunos de arquitetura, e que foi realizada no Ministério. Lá havia projetos de alunos, inclusive do Ulisses. Aí contam que o Oscar esteve na exposição e, ao se deparar, com o projeto do Ulisses, exclamou que não havia mandado nenhum projeto para a exposição” (Barbosa e Mattos, 2007, s/p).

4 Ainda como estudante de arquitetura na FNA, Burlamaqui recebeu menção honrosa no Congresso Internacional de Arquitetura, em Lima (1948), e no Concurso de Estudantes realizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), em 1949, conforme consta em seu currículo resumido (Martins, Parucher, Viana, 2008).

5 A partir de entrevistas com moradores do Presidente João Pessoa deduz-se que, aparentemente, entre a solução de projeto e o que se construiu, ou certamente bem posterior à obra concluída, houve alterações na justa separação de acesso para os diferentes públicos junto à avenida General Osório. A motivação principal parece ter sido o desconforto, sobretudo para os moradores do bloco vertical, de públicos estranhos aos apartamentos distribuindo-se aleatoriamente por todos os espaços disponíveis enquanto aguardavam atendimento nos demais serviços reunidos no bloco horizontal.

6 Segundo moradores mais antigos, o quinto pavimento era bastante usado nas primeiras décadas após a ocupação do edifício. Festas de aniversários, celebrações de datas comemorativas, festas eventuais de jovens (os “assustados”), além do uso cotidiano por crianças e bebês, era variada e intensa a apropriação dessa área, ainda que desprovida de equipamentos de lazer e afins. Atualmente, a frequência a essa área é controlada e rarefeita, a ponto de ser praticamente inexistente para o cotidiano dos moradores do bloco residencial.  


 

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Francisco Sales Trajano Filho

Arquiteto, Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. Professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. Avenida Trabalhador São-Carlense, 400, Centro 13566-590, São Carlos SP, Brasil..

sales@sc.usp.br

https://orcid.org/ 0000-0003-3594-6878