REGISTROS, ISSN 2250-8112, Vol. 18 (2) julio-diciembre 2022
ark:/s22508112/RRIH.v18i2.576
Construção imagética das casas de veraneio publicadas na revista Casa & Jardim (1977-1986)
Looks Are (not) Deceiving: Vacation Homes Image-Building, as Published in Casa & Jardim Magazine (1977-1986)
Dely Bentes
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
O artigo apresenta projetos de casas de veraneio publicados na revista brasileira Casa & Jardim entre os anos de 1977 e 1986. Tomando como base o universo cotidiano desta publicação direcionada ao público leigo, a discussão gira em torno da existência de uma aparência estereotipada para esse tipo de residência. Especula-se que esta seja construída a partir da combinação de determinados materiais e elementos e soluções de cobertura presentes nos projetos, combinados com as narrativas textuais que os acompanham. No período em tela são identificados dois modelos distintos que se materializam em imagens características das casas de campo e de praia, buscando representar ideais de conforto, simplicidade e integração com a natureza. Além da apresentação dos exemplares pesquisados, o artigo também procura identificar a utilização de procedimentos semelhantes entre os arquitetos brasileiros diretamente ligados à tradição moderna.
Palavras-chave: anos 1980, casa de veraneio, arquitetura, revista Casa & Jardim
Abstract
The article presents vacation houses designs published in the Brazilian magazine Casa & Jardim between 1977 and 1986. Taking as a basis the everyday universe of this publication aimed to the lay public, the discussion revolves around the existence of a stereotypical appearance for this kind of residence. It is speculated that this is built from the combination of certain materials, elements and covering solutions present in the designs, in association with the textual narratives attached to them. In the screen period it´s possible to identify two distinct models, materialized in characteristic images of country and beach houses, attempting to represent ideals of comfort, simplicity, and integration with nature. The article also identifies the use of similar procedures among Brazilian architects directly connected to the modern tradition.
Keywords: 1980s, vacation house, architecture, Casa & Jardim magazine
Este artigo pretende discutir as peculiaridades dos projetos das residências de veraneio tomando como ponto de partida o levantamento de todas as edições da revista Casa & Jardim entre os anos de 1977 e 1992.¹ O interesse, neste caso, é explorar um universo mais cotidiano da produção arquitetônica, resultado do ofício corriqueiro dos arquitetos e arquitetas e distante, portanto, das realizações eruditas, via de regra levadas à cabo em contextos excepcionais de produção e encomenda –motivo pelo qual as tradicionais publicações especializadas foram desconsideradas como fonte primária de consulta. O recorte temporal da pesquisa que alimenta as discussões teve por objetivo construir um panorama estendido sobre toda a década de 1980, período também pouco explorado na historiografia da arquitetura brasileira de forma geral e, especialmente no que diz respeito à produção de residências unifamiliares, sejam urbanas ou de veraneio.
A Casa & Jardim foi lançada no mercado editorial ainda no ano de 1953 e segue, ainda em 2022, sendo editada e distribuída através de exemplares físicos para assinantes e pontos de venda locais. A longa duração do periódico é uma exceção dentre os títulos brasileiros semelhantes, visto que nos últimos anos, a maior parte das publicações deste nicho foram descontinuados ou migraram para o formato exclusivamente online. Dentre opções equivalentes que poderiam ter sido selecionadas para a pesquisa, a escolha da revista Casa & Jardim se deu, entre outros motivos, pelo extenso período coberto – no ano de 1965 foi comprada da editora Monumenta pela “FC” (Fernando Chinaglia), que esteve à frente do título até 1998, quando foi vendido para o grupo Globo. Além disso, também manteve o foco nos projetos de arquitetura residencial, muitos deles acompanhados de desenhos técnicos e memoriais, e não apenas em matérias de decoração de interiores, o que também é usual entre as revistas desse segmento.
Apesar de ser destinada ao público em geral e vista com desconfiança ou até mesmo desprezo pelos membros mais ilustrados da profissão, é possível encontrar indícios da existência de arquitetos entre os seus leitores, principalmente através de algumas peças publicitárias veiculadas em suas páginas, como o exemplo que fala diretamente aos profissionais (Figura 1), publicado em uma edição de setembro de 1978, ou até mesmo na seção de cartas dos leitores, onde os mesmos se identificavam como profissionais ao encaminharem suas dúvidas e comentários.
Figura 1. Anúncio da empresa “Enrico Guarnieri”. Casa & Jardim, 284, p. 125.
Este olhar enviesado, naturalmente desencoraja a utilização desta fonte em pesquisas acadêmicas, em especial naquelas que miram nos projetos de arquitetura, embora sirva, mais comumente, para embasar investigações que lidam com temáticas relacionadas à domesticidade. Para driblar a heterogeneidade de apresentação das residências –algumas sem desenhos, outras com poucas fotografias– optou-se por basear as análises sobre as características epidérmicas das casas, estas sempre disponíveis em fotografias ou nos textos descritivos. Assim, os materiais de acabamento e revestimento, tipos e materiais de cobertura, sistema construtivo, modelos e materiais de esquadrias, foram os elementos que estruturaram a análise. Isso permitiu observar o comportamento de tais elementos ao longo do tempo, identificando recorrências e apagamentos de determinadas combinações.
Em paralelo, a análise dos textos explicativos, das matérias e pautas frequentes e ainda da propaganda veiculada na revista, foi possível perceber algumas peculiaridades relacionadas à destinação do projeto. A construção imagética dessas residências está ancorada fortemente na relação que é criada entre os materiais e os ideais que são plasmados nos memoriais que acompanham as reportagens. O presente artigo se propõe a explorar estas questões dentre os projetos de veraneio, apresentando duas diferentes apropriações fisionômicas em exemplos localizados entre os anos de 1977 e 1986. A identificação de tais grupos foi resultante das análises realizadas entre as residências publicadas na revista a partir dos critérios descritos acima.
Campo, praia ou cidade?
Os projetos apresentados na revista Casa & Jardim têm na determinação de sua destinação –campo, praia ou cidade– parte importante de sua construção narrativa. A edição de julho de 1980, apresenta uma página inteira dedicada à propaganda de uma edição especial: “Projetos e fachadas”. Trata-se, em verdade, da reprodução da capa desse número extra, que anuncia em caixa alta a presença de opções para cada diferente uso. (Figura 2)
Figura 2. Anúncio da publicação extra intitulada “Projetos e fachadas”. Casa & Jardim, 306, p. 87.
Pouco antes, uma matéria publicada na edição de setembro de 1979, se propõe a esclarecer tudo sobre a construção de uma casa. O arquiteto que assina a reportagem, João Lucílio de Albuquerque, reforça a importância da definição precisa, por parte do cliente, do uso da residência, de maneira a melhor direcionar as decisões do profissional responsável pelo projeto. Ele diz: “Quanto ao uso, suas reflexões também deverão ser bastante realistas, pois uma casa de praia é bastante diferente de uma residência. Cada uma delas tem funções e usos específicos, que determinarão o projeto” (Albuquerque, 1979, p. 60).
Das 633 casas levantadas pela pesquisa que embasa esta discussão, em apenas 105 delas não havia menção ao uso, ou seja, cerca de 16,5% do total de projetos. A grande maioria, portanto, não apenas apresenta essa informação, como também procura deixar evidente a sua relação com as definições arquitetônicas, ou mesmo tectônicas, que lastreiam os projetos. Nesse sentido, parece claro haver determinados materiais e elementos, que combinados, conduzem às imagens que melhor definem a “aparência” de cada um dos usos. Uma espécie de “physique du rôle” arquitetônico é o que parece melhor definir a maneira como as decisões de projeto terminam por induzir ou reforçar a vocação dos espaços e a identificação simbólica com suas referências arquetípicas, como numa atualização livre do conceito de “caráter”,² tão caro à arquitetura acadêmica e presumidamente inexistente na concepção moderna, dada a preferência pela abstração. Some-se a isso as licenças poéticas às quais os arquitetos parecem se permitir, principalmente ao projetarem casas de final de semana e férias:
As casas de praia e campo representam uma interessante oportunidade de experimentação com materiais e programa face seu menor compromisso funcional, sua natural disposição ao lazer e divertimento, (...) onde, em compensação, o valor simbólico da moradia assume um papel ainda mais relevante. (Zein, 2000, p. 362)
O comentário de Ruth Zein, acima, é um excerto de sua dissertação de mestrado, em que analisa todos os projetos residenciais de Paulo Mendes da Rocha. O contexto diz respeito à notável diferença observada pela autora entre os projetos urbanos assinados pelo profissional e aqueles destinados às residências de veraneio. Em dois³ dos 12 exemplares apresentados, o arquiteto, tão fiel às proposições volumétricas características da escola brutalista paulista, chega a fazer uso de uma cobertura de telhado de quatro águas, que Zein relaciona à tipologia da casa bandeirista (Zein, 2000, p. 362).
Além de Mendes da Rocha, Vilanova Artigas também se valeu das casas de veraneio para realizar experimentações com técnicas construtivas e materiais não usuais ao seu repertório, como destaca Marcio Cotrim em sua tese (Cotrim, 2007, p. 511). Nos exemplos elencados pelo pesquisador, destaca-se a utilização de coberturas de barro em duas águas sob as quais todo o –enxuto– programa das casas é resolvido. Os demais materiais, mantidos à vista, não fogem à simplicidade instaurada pelo telhado tradicional. As construções se completam com blocos portantes e estrutura de madeira.4
Gregori Warchavchik, nome associado ao marco zero da arquitetura moderna brasileira, também lançou mão de uma referência imagética de extrema rusticidade ao projetar o pavilhão de praia da Sra. Jorge Prado, em 1946, no Guarujá (Mindlin, 2000, p. 51). Além da utilização dos tijolos comuns, a cobertura é de sapê e o piso mescla toras de madeira numa base cimentada. O telhado, que se estende formando uma varanda coberta é apoiado também por toras rústicas de madeira.
Em se tratando de residências de veraneio, muitas vezes em locais afastados ou de difícil acesso, o uso da mão de obra e materiais locais também são fatores que terminam por influenciar decisões de projeto. De forma análoga, a diferença entre as dimensões e características dos lotes urbanos e aqueles localizados em regiões periféricas e afastadas dos grandes centros também são condicionantes objetivos das diferenças de partido –para se usar um termo um tanto obsoleto, mas contemporâneo à década de 1980– adotadas nos distintos programas.
“Eu quero uma casa no campo”
Quando José Rodrigues Trindade e Luís Otávio de Melo Carvalho, mais conhecidos como Zé Rodrix e Tavito, compuseram a música “Casa no campo”, em 1971, pareciam estar expressando o desejo de cada vez mais brasileiros em buscar uma vida mais tranquila e a possibilidade de ter momentos de descompressão longe dos grandes centros urbanos. Não há dúvida que a situação política do país –viviam-se os anos de chumbo da ditadura militar– está retratada na canção. Luiz Carlos Sá, da dupla Sá e Guarabyra, escreveu um artigo para a Revista USP em que comenta sobre a composição: “a música (...) invadiu o imaginário sonhador de toda uma geração incomodada pelo súbito ingresso no país numa escala industrial e capitalista iniciada pela era JK e embalada pela necessidade da ditadura militar de afirmar-se como ‘progressista’” (Sá, 2010, p.127).
Essa opressão em parte foi gerada por cidades cada vez mais inchadas pelo êxodo rural, que trouxe para as regiões metropolitanas quase 40 milhões de pessoas entre as décadas de 1950 e 70 (Cardoso e Novais, 2009, p. 581), atraídos pelas possibilidades de emprego e melhores condições de vida que a política desenvolvimentista de JK havia alavancado. Em paralelo a esse movimento, ocorre também
o aparecimento do fenômeno da segunda residência, [que] aconteceu no Brasil na década de 1950, com o desenvolvimento nacional, responsável pela implantação da indústria automobilística, pela ascensão do rodoviarismo, e também pela emergência de novos estratos sociais médios e urbanos que, aos poucos, começariam a incorporar entre os seus valores socioculturais a ideologia do turismo e do lazer. (Ribeiro et al., 2014, p. 81)
O arquiteto e crítico Oriol Bohigas, comentando sobre esse assunto, também reforça o quanto “a instituição do veraneio é uma consequência pura e natural das grandes acumulações urbanas, com todos os seus problemas não resolvidos” (Bohigas, 1969, p. 83).
Em relação às casas publicadas na Casa & Jardim, as de veraneio – incluindo as de campo e de praia – suplantam as casas urbanas já a partir do ano de 1987, embora em 1986 já apresentassem uma equivalência quantitativa. (Gráfico 1)
Gráfico 1. Comparação quantitativa entre os projetos de veraneio e urbanos publicados na revista Casa & Jardim entre 1977 e 1992. Produção autoral.
É possível especular sobre uma tendência de verticalização, o que é corroborado pela série histórica dos dados relativos ao tipo de domicílio dos censos de 1980, 1991 e 2000. Apesar de a grande maioria dos brasileiros morar em casas –93, 91 e 89% da população, respectivamente–, verifica-se uma leve tendência de queda entre aqueles anos, acompanhada pela também discreta elevação dos percentuais de habitantes de apartamentos, de 7, 9 e 10% em 1980, 91 e 2000 (Alves, 2004, p. 24).
Diante dos objetivos aqui propostos, contudo, mais importante que desvendar possíveis motivos para o incremento da publicação de casas de veraneio nas páginas da Casa & Jardim, parece ser investigar o quanto as narrativas criadas pela revista alimentam a mítica da “casa de campo” e de sua imagem idealizada. A associação a alguns valores se repete com frequência nos textos e nos títulos das matérias das casas de veraneio. Dentre as 20 ocorrências dos termos “rústico(a)” e “rusticidade”, apenas seis fazem referência a casas urbanas, semelhante ao que ocorre com “natural” ou “natureza”, em que 15 das 18 menções ocorrem nos títulos das casas de campo ou praia. Outras palavras como “conforto”, “simplicidade”, “aconchego” e “tranquilidade”, igualmente aparecem com mais frequência nas descrições dos imóveis de férias.
A associação aos ideais de simplicidade e natureza fica clara nos refrãos de Rodrix e Tavito:
(...) Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar do tamanho da paz
(...) Eu quero carneiros e cabras
pastando solenes no meu jardim
(...) Eu quero plantar e colher com a mão
(...) Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapê
Referências semelhantes povoam também as descrições dos projetos publicados nas páginas da revista. As aparências dessas casas parecem refletir um certo ar nostálgico que busca, na simplicidade de materiais e elementos, se reconectar com um passado rural. O dicionário Houaiss define “rústico” como “relativo ao campo, à zona rural; próprio da vida no campo; rusticano”, mas também como “sem acabamento; que aparenta simplicidade (...), ou ainda de algo “feito ou arranjado de forma a aparentar rusticidade”. Essa definição corrobora a ideia que parece ser reforçada pela revista, de que há determinados materiais cuja combinação e tratamento refletem com maior eficácia esse imaginário. A madeira parece ser um desses e está presente na maior parte das casas que são apresentadas como “rústicas” nas matérias e reportagens.
Apesar de a origem do termo estar relacionada à vida rural, a sua utilização se estende –e nesse caso, principalmente através das analogias que são construídas a partir dos materiais e características formais e/ou construtivas– às moradias de praia e, em alguns casos, até mesmo às urbanas. Nesta seção estarão organizados os projetos de veraneio –campo ou praia– que se afinam com o ideário de despojamento anteriormente anunciado por algumas palavras-chave recorrentes. Além da madeira, já mencionada, os tijolos aparentes, as alvenarias brancas, os grandes telhados cerâmicos de beirais extensos que formam alpendres generosos e as varandas dão o tom dos projetos apresentados a seguir, a aparência comum que lhes une.
A pequena casa de campo projetada por Carlos Bratke, que aparece na edição de outubro de 1981, é um exemplo da utilização da madeira dentro do objetivo de conferir simplicidade e rusticidade à arquitetura. O trecho da reportagem que detalha os materiais utilizados apresenta um título destacado em negrito com o texto: “Acabamento rústico”. A descrição explica que “a estrutura do telhado foi feita com troncos de eucalipto, (...) em lugar de caibros na estrutura foram usadas tábuas de pinho colocadas na vertical” (C&J 321, p.50). No corte do projeto, o arquiteto se preocupa em indicar tais elementos na cobertura. (Figura 3).
Na página de abertura da matéria, o desenho em perspectiva é complementado por um cenário que evoca também a ideia de integração com a natureza circundante (Figura 4), tema de crucial importância na narrativa das casas de veraneio, colocando-as como um contraponto aos espaços cerrados das moradias urbanas.
Figura 3. Corte e planta baixa do projeto do arquiteto Carlos Bratke. Reprodução revista Casa & Jardim, 321, p.48.
Figura 4. Perspectiva do projeto do arquiteto Carlos Bratke. Reprodução revista Casa & Jardim, 321, p. 46-47.
Figura 5. Casa de praia projetada por Claudio Bernardes. Casa & Jardim, 272, p.110-111.
Figura 6. Casa de praia projetada pelo arquiteto Miguel Juliano. Casa & Jardim, 272, p.110-111.
Na edição de setembro de 1977, encontra-se publicada uma casa de praia construída na cidade de Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro. O projeto é de Claudio Bernardes5 e o texto da reportagem enfatiza a presença da madeira e ainda a associa a outros materiais: “Nas fachadas, o tijolinho, a madeira e amplos panos de vidro se alternam, em composição rústica (...). A cobertura, em capa e canal, tem duas águas e amplo beiral” (C&J 272, p.111). Na fachada posterior, a combinação de tijolos crus com a estrutura de madeira roliça aparente, parece sugerir uma interpretação atualizada do pau-a-pique da casa de campo da canção de Rodrix e Tavito. (Figura 5).
Uma casa de praia do arquiteto Miguel Juliano, nome também associado à escola paulista, aparece na edição de fevereiro de 1982. O projeto apresentado, contudo, não se assemelha às soluções radicais do concreto aparente, mas se traduz numa planta quadrada, circundada por varandas e coberta por um telhado cerâmico em quatro águas (Figura 6) tal como no projeto de Paulo Mendes da Rocha, que Zein associou à tradicional casa bandeirista (2000, p. 362). O texto enfatiza a ideia de rusticidade e simplicidade, reforçando a adequação dos materiais e soluções construtivas propostas pelo arquiteto ao conceito idealizado para a residência: “Em toda a casa, a rusticidade do acabamento é perfeitamente adequada à paisagem e às suas funções específicas” (C&J 325, p.42). Os materiais utilizados mais uma vez aparecem relacionados à condição litorânea do projeto. Alvenarias portantes caiadas, piso de tijolos e a cobertura sustentada por pilares feitos de troncos de árvores da região sem beneficiamento remetem à simplicidade caiçara, presente em muitas das casas de veraneio mostradas na revista, especialmente naquelas implantadas no litoral. A representação da rede na varanda parece comparecer como metáfora da possibilidade de descanso que a casa oferece.
A observação dessa residência confirma a associação daqueles materiais e elementos que fazem parte da construção imagética de uma casa de campo para o senso comum. A presença das varandas parece ser outro elemento fortemente plasmado no imaginário popular. O trecho abaixo é retirado de uma pesquisa que investigou a visão idealizada que os moradores da cidade possuem em relação às residências de veraneio. Nela, a autora, a jornalista Gislene Silva, vai fazer essa pergunta entre os leitores de uma publicação também destinada ao grande público, a revista “Globo Rural”. A resposta que encontra se resume na seguinte descrição:
A casa de campo com que sonham os leitores será erguida com simplicidade, em tijolinhos à vista ou no modelo pré-fabricado com madeira. Os móveis, também de madeira, serão em estilo colonial, confirmando a rusticidade tão procurada. Os sonhadores com um refúgio no campo querem ainda uma varanda circundando a casa, (...). Espera-se que a casa no campo seja o melhor dos aconchegos. (Silva, 2009)
No projeto do arquiteto Nilson Delai, uma casa de praia em Santa Catarina, publicada na edição de julho de 1984, a varanda não circunda a residência, mas está presente em toda a sua extensão, uma vez que os espaços são distribuídos de forma longitudinal. Desse modo, todos os setores –à exceção das dependências de funcionários– se abrem para uma extensa área alpendrada que ocupa todo o comprimento do volume, como se vê na planta baixa que acompanha a matéria. (Figura 7)
Os materiais seguem o mesmo repertório com estrutura em madeira, telhado cerâmico pouco inclinado, paredes rebocadas e pintadas em branco. No alpendre, mais uma vez aparecem as redes que, nesse caso, estão representadas também no desenho da planta. (Figura 8)
Neste caso, a simplicidade é reforçada pelos elementos decorativos, como os tapetes em sisal e os vasos cerâmicos, que ajudam a compor a imagem rústica. A existência de um projeto de arquitetura quase passa desapercebida, fazendo parecer que a casa poderia ter estado sempre naquele local. Ela não tem a afetação do excesso de desenho e os materiais acompanham e reforçam essa ideia, como se o projeto se esmerasse para reproduzir uma autêntica construção vernacular. Até mesmo a composição e o enquadramento da fotografia que ilustra a reportagem ajudam a transmitir a sensação de ócio despreocupado. O grande telhado de uma água parece uma continuidade das montanhas ao fundo, enquanto o gramado ocupa quase a metade da composição, colocando a arquitetura como parte integrante da paisagem.
A percepção dessa austeridade aparece evidenciada através do relato com o qual o arquiteto e crítico catalão Oriol Bohigas ilustra o que entende por uma construção de veraneio. Em um texto publicado em 1969, ele argumenta que:
(...) as condições físicas podem cair a limites inacreditáveis e a decência decorativa muitas vezes não existe. Todos nós conhecemos casas de veraneio familiares onde o mobiliário é o que sobrou das sucessivas benfeitorias da casa da cidade. (...)
Mas, é preciso reconhecer, naquela típica casa de veraneio, duas vantagens inquestionáveis: a sua localização urbana e a sua confortável falta de representatividade. (Bohigas, 1969, p. 62, tradução nossa)
Figura 7. Planta baixa e fotografias do interior da casa de praia projetada por Nilson Delai. Casa & Jardim, 354, p. 54-55.
Figura 8. Vista externa do projeto. Casa & Jardim, 354, p. 52-53.
É essa “falta de representatividade” a que Bohigas se refere que parece deixar em patamares muito próximos a casa que não é projetada por um arquiteto –pode-se dizer, talvez, mais próxima de uma manifestação vernacular– e os demais projetos mostrados até aqui. O que parece estar por trás disso é uma certa humildade ao reconhecer que o protagonismo não está na arquitetura propriamente, que sem grandes esforços estruturais ou compositivos, aceita seu papel coadjuvante na narrativa do veraneio. O despojamento se manifesta através dos materiais naturais e da volumetria discreta.
Paredes caiadas em branco, tijolos aparentes, a madeira que comparece na estrutura, forros e caixilhos; o alpendre, o telhado, enfim, não há nada que não seja muito familiar nessas casas. E é essa cômoda identificação o que realmente parece importar para esses projetos. Essa “atmosfera doméstica instantaneamente reconhecível pelas suas características comuns e humanas” (Rybczynsky, 2002, p. 234) é uma das formas com que Witold Rybczynski define a ideia de conforto no seu livro, Casa. Pequena história de uma ideia (2002). A estratégia narrativa adotada pela revista transporta os usuários/ leitores para dentro dos espaços projetados, reforçando ainda mais a familiaridade de suas soluções. Esta precariedade rústica e a escolha dos materiais naturais aparecem com maior frequência nas casas litorâneas, como se tentassem reproduzir o despojamento de uma construção caiçara, numa espécie de especialização da ideia de caráter, discutida anteriormente. Esta aparência, contudo, não é a única imagem que as casas de férias podem assumir, e a seção seguinte se ocupa de apresentar uma outra.
Muita racionalidade, algum simbolismo e uma aparência
Nas casas de veraneio apresentadas neste grupo, as questões figurativas são colocadas em segundo plano em favor de certa racionalidade –construtiva, funcional e de adequação ao sítio– que parece ser o verdadeiro leitmotiv que as une. Aos materiais já mencionados, acrescenta-se o concreto armado, que em curvas orgânicas ou modulações cartesianas passam a incorporar o catálogo das residências. Também as coberturas adotadas contribuem para a geração de uma volumetria original. São telhados pouco inclinados ou planos, em sua maioria executados em laje ou em telhas em placas, como as de fibrocimento, material mais comum no período. Mas, ainda que as mudanças pareçam sutis, a aparência dessas residências e o discurso que as acompanham estabelecem efetivamente uma diferença mais acentuada em comparação às residências exemplificadas pela seção anterior.
A casa de praia projetada pelo arquiteto Marcos Acayaba, publicada na edição 282, de julho de 1978, é o primeiro exemplo a ser apresentado. Desde o título, “A natureza como fator preponderante”, a matéria foca na adequação do projeto às curvas de nível, às visadas do mar e da montanha e na maneira “correta” de resolver os percursos em um terreno inclinado, explicado no trecho a seguir: “O acesso ao mar também foi resolvido com base nos elementos naturais: um caminho, com o menor aclive possível...” (C&J 282, p.85). A implantação da residência, que aparece na primeira página da matéria, mostra o quanto a forma da construção se adequa às condições físicas e menos a uma imagem definida ou desejada a priori. (Figura 9)
Do mesmo modo, as demais escolhas projetuais aparecem justificadas a partir de decisões operativas. Os materiais com os quais é construída são a madeira e os tijolos cerâmicos –já presentes na quase totalidade das casas de veraneio apresentadas– aos quais somam-se o concreto e uma cobertura de fibrocimento com inclinação muito discreta. Os materiais e mesmo a existência de um alpendre, para onde os quartos e a sala de voltam, podem sugerir uma inspiração na arquitetura vernacular. No entanto, há uma sofisticação tectônica e ela se evidencia pelas longas peças de madeira e pela coexistência da cobertura de fibrocimento e de volumes em laje plana (Figura 10), que abrigam banheiros e cozinha. A maneira como são utilizados, tira esses materiais de seu lugar comum e afasta a ideia de uma arquitetura espontânea, ou de uma cópia caricaturada de uma autêntica casa de pescador. As madeiras aparelhadas e produtos industrializados reforçam ainda mais esta impressão.
Ainda no ano de 1913, o arquiteto austríaco Adolf Loos, publicou um texto em que se propunha a definir as principais diretrizes a serem adotadas no desenvolvimento de uma residência de veraneio. Com o título sugestivo de “Regras para quem constrói nas montanhas”6 (Loos,1999), o autor recomenda que seja a paisagem a verdadeira protagonista do projeto e rechaça os simbolismos grosseiros. Alguns trechos mais pertinentes ao tema seguem reproduzidos abaixo.
Não construa de modo pitoresco. Deixe que os maciços, as montanhas e o sol produzam este efeito. O homem que se veste de modo pitoresco não é pitoresco, é um palhaço. (...)
Preste atenção às formas que constrói o camponês, já que são parte da substância que advém da sabedoria dos seus antepassados. Mas, busque o fundamento da forma. Se os avanços da técnica têm permitido o aperfeiçoamento da forma, há que se empregá-la sempre assim: aperfeiçoada. (...)
A obra humana não deve competir com a obra divina (...).
Seja sincero. A natureza só pode suportar a sinceridade. Se dá bem com pontes treliçadas, mas se distancia dos arcos góticos com pináculos e seteiras (...). (Loos, 1999, p. 74-75.)
O texto recusa veementemente o modo pitoresco de construir, assim como os elementos decorativos que fazem menção aos estilos do passado; não haveria de se esperar nada diferente do autor de Ornamento e crime (2004). O que Loos fala no segundo parágrafo reproduzido, em relação à tradição e técnica se aplica especialmente ao que foi argumentado em relação à casa de praia apresentada acima, no que diz respeito às soluções construtivas. Na frase seguinte, Loos recomenda total sujeição da arquitetura ao seu entorno e à paisagem, tal como propôs Acayaba.
A paisagem também aparece como elemento disparador do projeto do arquiteto Laonte Klawa para uma casa de praia publicada na edição de julho de 1980. Nesta, também o título antecipa essa intenção: “O verde e o mar como paisagem” (C&J 306, p.70), enquanto a fotografia em página dupla corrobora a percepção. (Figura 11)
Figura 9. Projeto de Marcos Acayaba para uma casa de veraneio em Ilhabela (litoral paulista). Casa & Jardim, 282, p. 84-85.
Figura 10. Encontro dos volumes com a cobertura em fibrocimento. Casa & Jardim, 282, p. 88-89.
Figura 11. Casa de praia projetada por Laonte Klawa. Casa & Jardim, 306, p. 70-71.
Figura 12. Imagens internas do projeto. A foto maior, à direita mostra o volume cilíndrico da escada para onde convergem as vigas. Casa & Jardim, 306, p.72-73.
Figura 13. Página dupla de abertura da matéria que apresenta o projeto de Zanettini. Casa & Jardim, 306, p. 82-83.
Na imagem, uma vasta vegetação de espécies tropicais quase encobre por completo a arquitetura. Mas, do que se vê, fica clara a prevalência do concreto armado e dos tijolos aparentes. A madeira ficou restrita às esquadrias, que ainda assim receberam pintura. Externamente, a casa não é mais do que um invólucro para abrigar as funções a que se propõe. Nas fotografias internas se revela mais fluida e conectada aos espaços de fora do que faz parecer seu volume. A legenda confirma essa impressão destacando que toda a parte social se abre para o jardim.
Em relação aos materiais, o concreto, mantido aparente, resolve toda a estrutura e também grande parte do mobiliário fixo –estantes, bancadas, armários e sofás. Os tijolos que fazem os fechamentos parecem continuar no piso em lajotas cerâmicas. A simplicidade que se esconde por trás da materialidade espartana e da aparente economia de meios, é rompida pelo virtuosismo estrutural das vigas que convergem para o único ponto de apoio interno, que se confunde com a caixa da escada, um volume cilíndrico que rompe a cobertura e pode ser visto também na fachada. (Figura 12)
Já o projeto da casa de campo do arquiteto Siegbert Zanettini em Atibaia, no interior paulista, resolve toda a construção utilizando o concreto com muita parcimônia, atendo-se aos tijolos aparentes e à madeira como materiais principais. A matéria, publicada em julho de 1980, tem como mote principal a ideia de comunhão com a natureza, reforçando que o terreno havia sido sutilmente acomodado para receber a construção sem que nenhuma ação radical fosse executada, como o trecho reproduzido a seguir detalha:
Zanettini modelou o terreno sem destruir árvores, trabalhando apenas as áreas vazias. A vegetação existente foi conservada, formando um jardim natural, com todas as características de uma paisagem rural. Não foram utilizadas plantas ornamentais, estranhas a essa natureza (...). O arquiteto deixou que a vegetação fosse invadindo a casa, se fundindo a ela e formando um todo (C&J 306, p.82)
As fotografias que ilustram a reportagem (Figura 13), destacam o bosque que emoldura a construção, enquanto a planta baixa do pavimento térreo mostra a maneira como a residência está implantada. Os volumes semicilíndricos que abrigam as áreas molhadas e a residência do caseiro, funcionam também como contenção para o pequeno corte realizado no terreno. O arquiteto os define como “um muro de arrimo de tijolos, constituído de arcos tipo português, [que] sustenta a terra e serve de apoio às vigas.” (C&J 306, p. 83). A organização espacial dessa casa se assemelha à de Marcos Acayaba; nela, também os quartos e áreas sociais são separados longitudinalmente das áreas molhadas, que naquele caso estão localizadas em volumes de concreto igualmente sobrepostos pelo grande telhado de uma água, como no projeto de Zanettini.
A sequência de grandes vigas de madeira reforça visualmente a sua disposição longitudinal, como pode se perceber nas imagens que revelam os interiores da construção. (Figura 14)
Os caibros e ripas também compõe a espacialidade interna, uma vez que o telhado não recebe forro nas áreas comuns. O arquiteto explica que a circulação –que cruza todo o volume e o fragmenta em duas fatias longilíneas– funciona como uma rua que “desemboca em um lado, em uma praça, e de outro, num bosque” (C&J 306, p.83). A racionalidade espacial é valorizada no discurso que acompanha esse projeto e, aqui também, a materialidade rústica não induz a uma narrativa nostálgica ou pontuada por simbolismos. Até mesmo a descrição do fogão a lenha, presente na cozinha –é nesse cômodo que o concreto se soma aos tijolos fazendo a bancada da pia que segue um desenho curvo– não evoca reminiscências passadas. Diferente disso, o texto pontua que ele convive “sem conflitos” com o fogão a gás.
As bancadas da cozinha e dos banheiros da casa de praia publicada na revista Casa & Jardim de setembro de 1980, também são feitas em concreto; o mesmo material resolve as camas, sofás e bancos que mobíliam a residência. Na ausência de uma vista, Cesar Luís Pires de Melo, o arquiteto autor do projeto, volta a casa para o interior do lote, mantendo as fachadas que se abrem para a rua quase totalmente fechadas, como se vê na fotografia que estampa a capa da matéria. (Figura 15)
O autor explica na reportagem que fez apenas pequenas frestas de vidro temperado nesses planos periféricos. Isso lhe permitiu abrir mão de muros em quase todo o perímetro do lote, deixando a própria arquitetura e a vegetação plantada ao seu longo, como limite entre o domínio público e privado. As faces que se voltam para o pátio central, por outro lado, são francamente abertas e as fotografias que mostram os interiores fazem crer que são bem iluminados. (Figura 16)
Seja por dentro ou por fora, as telhas de fibrocimento participam de forma marcante da imagem da casa, assim como as lajes volterranas. Essas, aparentes internamente, em alguns trechos funcionam como forros para as telhas, que aparecem com maior protagonismo na varanda coberta. Os demais materiais que compõem o projeto são os tijolos, rebocados e pintados nas paredes e mantidos crus no piso e no forro/laje de cobertura. São, mais uma vez, as condicionantes do lugar que disparam o projeto, não há uma referência a ser evocada ou uma analogia a se decifrar.
Figura 14. Fotografias internas da casa de campo de Zanettini. Casa & Jardim, 306, p. 84-85.
Figura 15. Casa de praia projetada por Cesar Luís Pires de Melo. Casa & Jardim, 308, p. 102-103.
Figura 16. Fotografias internas da casa de campo de Pires de Melo. Casa & Jardim, 308, p. 104-105.
Figura 17. Projeto de Miguel Juliano para uma casa de praia. Casa & Jardim, 318, p. 66-67.
Figura 18. Corte esquemático do arquiteto. Casa & Jardim, 318, p. 70-71.
O arquiteto Miguel Juliano projeta uma casa de praia no Guarujá usando também três materiais. Mas nesse caso, os tijolos dão lugar às pedras que aparecem em duas empenas maciças paralelas, que definem os limites laterais da residência, publicada na edição de julho de 1981. (Figura 17)
Definitivamente são protagonistas no projeto, apesar de dividirem a cena com a grande laje inclinada de concreto armado moldada in loco –que faz a cobertura– e com o mezanino, que se apoia nos muros de pedra com vigas que também lhe servem de guarda-corpo. O tom cinza do concreto também está presente no piso, executado na obra com cimento, como esclarece o texto descritivo. Nesse projeto, também a implantação e a forma do volume são justificadas a partir do lugar. Assim, a parte mais alta da cobertura está posicionada aos fundos do lote, onde estão localizados os quartos, que se voltam para a vista das montanhas, como explica o texto que acompanha a matéria. Um pequeno corte ilustra o esquema e representa a ventilação cruzada, que também é apresentada como uma qualidade do projeto. (Figura 18)
A racionalidade também é sublinhada na reportagem, que destaca que “os espaços se sucedem de maneira muito funcional, sem obstáculos de paredes desnecessárias” (C&J 318, p. 68). Também a “simplicidade” da solução estrutural é mencionada no mesmo texto explicativo: “Sobre as duas paredes laterais de pedra maciça, (...) apoia-se a cobertura inclinada de concreto, recurso que criou um vão de 10 m no estar” (C&J 318, p. 69). Além da ausência de referências simbólicas, o que se vê nas narrativas desses projetos é a adoção de diferentes critérios para a validação das soluções, que além de fazerem uso de variados recursos espaciais, formais e tectônicos, também se vale de um vocabulário próprio. Adrian Forty, em seu livro “Words and buildings” (Forty, 2000), identifica, no advento da arquitetura moderna, também uma nova forma de se falar sobre a arquitetura, baseada em um vocabulário característico. Nesse sentido, Forty pontua que “quando duas ou mais das palavras, como: ‘forma’, ‘espaço’, ‘projeto’7, ‘ordem’ ou ‘estrutura’, são encontradas juntas, pode-se ter a certeza de se tratar do discurso modernista” (Forty, 2000, p. 19, tradução nossa.)
Definitivamente, a casa de praia projetada por Juliano é fortemente influenciada pela racionalidade moderna, e mais especificamente, por elementos característicos da “escola brutalista paulista”. Não fossem as referências imagéticas das quais a construção se apropria, a maneira com que o arquiteto é apresentado na reportagem, oferece fortes indícios de sua filiação. Natural de Uberlândia, Juliano é descrito como um profissional que iniciou a carreira trabalhando em escritórios de arquitetura, mas que obteve o título tardiamente, já depois de completar 40 anos. Um desses empregos foi com Vilanova Artigas, espécie de epíteto da escola paulista. Sobre a experiência, a revista destaca a fala do autor do projeto, afirmando que “aprendeu muito com os papos do mestre, com as obras que viu nascer e cuja clareza didática formou a base de seu trabalho” (C&J 318, p. 71).
No fascículo de maio de 1982, uma casa projetada pelo arquiteto Décio Tozzi, localizada às margens da represa de Ibiúna, em São Paulo, também lança mão de um desenho sinuoso para acomodar o programa da casa de campo ao terreno, privilegiando a paisagem e a topografia. A casa é térrea e está assentada um pouco abaixo de uma grande praça de acesso, o que se vê na fotografia que ocupa as duas páginas da capa da matéria. (Figura 19)
Os taludes que aparecem envolvendo o volume, insinuando a continuidade da laje, foram criados pelo autor para que a arquitetura parecesse parte do sítio original. Nessa imagem e na menor –vista a partir da direção oposta–, destacam-se os tijolos aparentes e a grande cobertura de concreto. A fotografia publicada na página seguinte deixa ainda mais clara a relação da cobertura com a topografia (Figura 20), o que é destacado por um trecho que reproduz a fala de Tozzi no texto da reportagem: “Dentro desse desejo de integração com a natureza, procuramos um desenho que acompanhasse o movimento da paisagem. Isso foi possível com o uso do concreto armado, material moldável, com o qual podemos criar as formas mais livres” (C&J 328, p.18).
Esta outra imagem (figura 21), mostra como a laje de cobertura define um contorno diferente dos limites da residência, se estendendo e criando espaços externos abrigados, semelhante à solução adotada em 1954 por Oscar Niemeyer para o projeto de sua própria residência, a Casa das Canoas. A estrutura independente e os fechamentos envidraçados também aparecem em ambas as soluções. Conceitualmente, o projeto também guarda semelhanças com algumas propostas já apresentadas. Na casa de Marcos Acayaba, a primeira da seção, percebe-se um paralelo, especialmente pela maneira como ambas se acomodam organicamente ao sítio. Nesse caso, contudo, o arquiteto faz uso de um recurso formal distinto para harmonizar a construção com as curvas de nível: Acayaba combina trechos retangulares e trapezoidais que em sequência acabam por desenhar uma silhueta sinuosa. Tozzi, por sua vez, se vale da plasticidade do concreto moldado in loco na concepção das formas orgânicas que definem o seu projeto.
Figura 19. Projeto do arquiteto Décio Tozzi. Casa & Jardim, 328, p. 16-17.
Figura 20. Projeto do arquiteto Décio Tozzi. Ângulo que evidencia a acomodação à topografia. Casa & Jardim, 328, p. 18-19.
Figura 21. Projeto do arquiteto Décio Tozzi. Cobertura sinuosa em balanço delimitando uma área externa sombreada. Casa & Jardim, 328, p. 18-19.
Figura 22. Casa de praia projetada por Carlos Bratke. Casa & Jardim, 337, p. 54-55.
Figura 23. Casa de praia projetada por Alfred Talaat e Ronald Racy. Casa & Jardim, 374, p. 100-101.
Apesar das similitudes, porém, não são essas as características que mais fortemente unem os exemplos que ilustram este grupo. O amálgama que as liga é a maneira racional com que os projetos são desenvolvidos e descritos e a ausência de relações simbólicas, especialmente em se tratando de casas de veraneio. E é esse o denominador comum que faz a casa de praia projetada por Carlos Bratke ser parte da mesma seleção, embora apresente uma estratégia de implantação muito diferente das anteriores, a começar pela maneira com que lida com a topografia existente, como pode ser visto no desenho em perspectiva que abre a matéria. (Figura 22).
Não há aqui uma intenção mimética e a arquitetura se impõe ao terreno em forma, estrutura e matéria. Concreto e tijolos permanecem aparentes, enquanto o telhado fica embutido entre as vigas de borda que, invertidas, fazem o papel de platibandas. O desenho triangular da estrutura é propositalmente realçado e define a volumetria resultante.
Mais uma vez, as decisões e estratégias projetuais parecem todas definidas por uma lógica baseada nas condicionantes do lugar –acessos, paisagem, topografia– e do programa, e não através de analogias ou de referências externas às diretivas estritamente arquitetônicas, o que fica claro também no texto que acompanha a descrição do projeto:
Aproveitando a área verde do condomínio em frente ao lote, o arquiteto Carlos Bratke projetou uma casa de praia implantada junto à rua, quase como uma extensão da via. Com linhas muito atuais, a casa foi escalonada em níveis, definindo dois blocos, unidas por pergolado que criam um agradável jardim interno. (C&J 337, p. 55)
As mesmas premissas embasam o projeto dos arquitetos Alfred Talaat e Ronald Racy para uma casa de praia publicada em março de 1986. (Figura 23)
Ou seja, são a vista e a forte declividade do lote que definem a sua ocupação. Lajes em concreto sinuosas, como no projeto de Décio Tozzi, marcam a volumetria da casa. No entanto, neste caso, a cobertura da residência está no mesmo nível do acesso e é percebida como uma continuação do piso, como o texto destaca: “A cobertura da casa, ao nível da rua, é uma laje plana, recoberta com gramado. (...) Permite que a pessoa (...) desfrute dos jardins e do mar, (...) sem nenhum impedimento” (C&J 374, p.102). Ou seja, a arquitetura não se impõe à natureza, tal como a sugestão de Loos nas suas “Regras para quem constrói nas montanhas”, quando afirma que “a obra humana não deve competir com a obra divina...” (1999, p. 74). No corte é possível visualizar claramente a implantação e a maneira como a casa de acomoda à sinuosidade do terreno. (Figura 24)
Figura 24. Corte esquemático da residência. Casa & Jardim, 374, p. 102.
O discurso enfatiza a organização funcional do programa e a valorização de estratégias baseadas na racionalidade das decisões projetuais e de conforto, como se percebe no trecho a seguir, retirado da reportagem: “A ventilação cruzada do interior da casa eliminou a necessidade de ar condicionado. (...) a estrutura da casa tem dois apoios intermediários e dois apoios nas extremidades, que são as empenas laterais.” (C&J 374, p. 105). A continuidade espacial entre o interior e o exterior também é mencionada pelo texto da matéria como um ponto positivo para que “a casa se tornasse um espaço interligado à natureza como um todo” (p.105). Não parece restar dúvidas do quanto esse discurso está em consonância com a narrativa moderna, tal como proposto por Adrian Forty (2000).
Conclusões
Em todo o recorte temporal da pesquisa fica clara a prevalência de certas soluções definidoras da aparência e da volumetria das residências de veraneio. As dimensões dos lotes, normalmente maiores quando localizados fora do perímetro urbano das cidades, acaba gerando uma maioria de casas térreas e normalmente também mais espraiadas. A transparência, que potencializa a relação do interior com o exterior, é também uma característica recorrente no período em questão. Neste recorte, os telhados cerâmicos são quantitativamente superiores do que quaisquer outras soluções de cobertura, como fica claro no diagrama a seguir. (Gráfico 2)
Em relação aos materiais mais utilizados nas fachadas –e que, em última instância, acabam por definir a aparência das casas e as associações imagéticas estabelecidas pelas narrativas apresentadas nos textos– a madeira, as superfícies pintadas e os tijolos aparentes são os acabamentos mais frequentes, enquanto o concreto torna-se cada vez menos usual, principalmente a partir do ano de 1980, tal como pode ser verificado no gráfico a seguir: (Gráfico 3)
Nesta mesma tabela, é possível verificar que a madeira e os tijolos aparentes comparecem como os materiais mais comuns, seguidos pelas superfícies emassadas e pintadas –normalmente brancas e eventualmente caiadas– tal como apresentado nos exemplos que ilustram o texto. A ausência de acabamento, nestes casos, está associada à ideia de simplicidade e rusticidade, o que é enfatizado pela narrativa apresentada pela revista. Se comparados aos mesmos gráficos referentes às residências urbanas, verifica-se um panorama diferente.
No que diz respeito à solução de cobertura (Gráfico 4), nas casas urbanas as lajes planas e inclinadas possuem maior relevância estatística, ainda que as coberturas cerâmicas se mostrem presentes em todos os anos do recorte, tornando-se prevalentes a partir do ano de 1982. Dentre os materiais de fachada ocorre uma situação análoga na comparação entre a madeira e o concreto. (Gráfico 5)
Gráfico 2. Comparação quantitativa entre os tipos de cobertura das residências de veraneio publicadas na revista Casa & Jardim entre 1977 e 1986. Produção autoral.
Gráfico 3. Comparação quantitativa entre os materiais de fachada das residências de veraneio publicadas na revista Casa & Jardim entre 1977 e 1986. Produção autoral.
Gráfico 4. Comparação quantitativa entre os tipos de cobertura das residências urbanas publicadas na revista Casa & Jardim entre 1977 e 1986. Produção autoral.
Gráfico 5. Comparação quantitativa entre os materiais de fachada das residências urbanas publicadas na revista Casa & Jardim entre 1977 e 1986. Produção autoral.
Enquanto nas casas de veraneio, a madeira comparece com destaque em todos os anos do recorte, o mesmo não ocorre entre as residências urbanas, em que aquele material é visto com menor frequência, à exceção do ano de 1986. Mas o concreto, por sua vez, assume o protagonismo até 1981, embora continue quantitativamente relevante nos anos seguintes.
Tomando como base os últimos gráficos apresentados, é possível afirmar que a imagem síntese da casa de veraneio divulgada pela revista Casa & Jardim entre os anos de 1977 e 1986, possui telhado cerâmico combinado com superfícies brancas ou em tijolos aparentes. A madeira, quase sempre mantida em sua forma bruta, também ajuda a reforçar a construção imagética das casas de férias. Tais materiais naturais parecem reforçar a vinculação com a natureza e criar uma antítese com o universo urbano, em que o concreto parece representar o ideário do progresso e da modernidade presente nas grandes cidades. Esta imagem é consistentemente reforçada pelas narrativas apresentadas pela revista, de maneira explícita ou subliminar.
Esta prática, contudo, não é restrita aos projetos cotidianos que ilustram a publicação comercial voltada ao público em geral. Tal como apontado anteriormente, esta estratégia de forte raiz simbólica também é identificada nas residências de campo e praia desenhadas por alguns arquitetos indubitavelmente associados à arquitetura de matriz moderna, como Artigas, Mendes de Rocha e Warchavchik. Isso parece
reiterar a persistência da imagem arquetípica da casa e sua relação com a ideia de conforto e acolhimento, características desejáveis aos refúgios de veraneio.
Notas
1 O levantamento foi realizado no âmbito da pesquisa de doutorado da autora (Bentes, 2021). O material está disponibilizado em www.arquiteturacotidiana.com
2 A questão do “caráter” da arquitetura é esmiuçada em três distintas conceituações propostas por Quatremère de Quincy através de um longo verbete que ocupa cerca de 40 páginas de seu Dictionnaire historique d´architecture... (1832). A referência feita no texto diz respeito ao terceiro tipo que, segundo o autor, “(...) consiste na arte de imprimir em cada edifício uma maneira de ser tão apropriada à sua natureza ou ao seu uso, que se possa ler por linhas bem pronunciadas o que é e o que não pode ser” (1832, p. 304, tradução nossa.).
Antes disso, Germain Boffrand teria, segundo Hanno-Walter Kruft, introduzido o conceito de caráter (caractere), de forma sistemática, pela primeira vez na teoria da arquitetura (Kruft, 2016, p. 298). Boffrand também recomenda que os edifícios expressem sua função: “As diferenças por sua disposição, por sua estrutura, pela maneira como são decorados, devem anunciar ao espectador sua destinação” (Boffrand apud Kruft, 2016, p. 299).
3 São as casas de Heloísa Alves de Lima e Mota, de 1961 e a Casa na praia de Ilhabela, projeto de 1978. (Cf. Zein, 2000, p. 364-366).
4 Os projetos referenciados por Cotrim são os da casa da Socióloga Elza Bernardi (p.511), projeto de 1975 construído em Peruíbe; a residência (não construída) para Marcia Nemes Yano, em 1977 (p. 512) e a da juíza Julia Romano, desenho de 1980 (p.515).
5 Apesar de estar identificado como arquiteto na reportagem, sabe-se que Claudio Bernardes, filho de Sergio Bernardes, não concluiu a sua graduação em arquitetura. Apesar disso, até sua morte prematura no ano de 2001, manteve um escritório ativo em sociedade com o arquiteto Paulo Jacobsen.
6 Artigo publicado originalmente no anuário Schwarzwald’Schen Schulanstalten, em 1913.
7. Em inglês a palavra utilizada é design, em que um vocábulo com sentido ambíguo e complementar entre “desenho” e “projeto” nos falta na língua portuguesa.
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Dely Bentes
Arquiteta, Doutora em arquitetura (Programa de Pós Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio de Janeiro). Professora Agregada Pontifícia Universidade Católica-Rio. Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Cep: 22451-900.
https://orcid.org/0000-0001-5016-8125
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