REGISTROS, ISSN 2250-8112, Vol. 18 (2) julio-diciembre 2022: 6-25
O papel da cozinha na boa vida moderna: Brasil e Estados Unidos (1945-1960)
The Role of Kitchen in Modern Good Life: Brazil and the United States (1945-1960)
Wylnna Vidal
Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Resumo
O presente trabalho discute o espaço doméstico moderno. Parte do reconhecimento da importância da casa de classe média produzida nos Estados Unidos, entre 1945 e 1960, e sua repercussão no contexto brasileiro. Toma como referência o programa californiano Case Study House (CSH) –experiência reconhecida no âmbito do debate do postwar living norte-americano e difundido no meio profissional brasileiro do período– e propõe uma leitura comparativa entre 04 casas do CSH e 04 casas realizadas na cidade de São Paulo nos anos 1950, elegendo o ambiente da cozinha como o fio condutor da discussão. Busca-se refletir sobre como as interações entre contexto, usos e categorias de usuários refletem na organização espacial das casas e averiguar a repercussão da permanência do trabalho doméstico nas casas paulistas. Da análise comparativa destas casas resulta um quadro marcado pela mescla contraditória de anseios de progresso, expresso de modo mais latente na aparência externa de casas brasileiras e apegos à modos e valores conservadores, expressos espacialmente no interior das casas, atributos que vistos em conjunto descrevem a atração exercida pelo American Way of Life e os limites de sua recepção e adaptação no contexto brasileiro.
Palavras-chaves: casa unifamiliar, espaço doméstico moderno, postwar living, cozinha americana
Abstract
This article discusses the modern domestic space. Assuming the importance of the middle-class house built in the United States, between 1945 and 1960, and its repercussion in the Brazilian context. It takes as reference the Californian Case Study House Program (CSH) –a recognized experience in the scope of the debate on American postwar living and well-kwon in the Brazilian professional environment of the period– and proposes a comparative analysis between 04 houses of the CSH Program and 04 houses built in São Paulo in the 1950s, choosing the kitchen as a guide for the discussion. It seeks to reflect on how the interactions between context, uses and categories of users reflect on the spatial organization of the houses and to investigate the repercussion of the permanence of domestic work in the houses of São Paulo. From the comparison between these houses, it becomes clear the contradictory mixture of the yearnings for progress, expressed more clearly in the external appearance of Brazilian houses, and attachments to traditional modes and values, expressed spatially within the houses, attributes that describe the attraction of the American way of life and the limits of its acceptance in the Brazilian contexts.
Keywords: single‐family house, modern domestic space, postwar living, American kitchen
Introdução
O presente trabalho trata do espaço doméstico moderno, a partir da discussão acerca do ideário associado ao projeto da casa de classe média produzida nos Estados Unidos entre 1945 e 1960, em diálogo com a produção de casas modernas no contexto brasileiro. Para tanto, toma como referência os projetos desenvolvidos no programa californiano Case Study House (CSH, 1945-1966) –experiência reconhecida no âmbito do debate do postwar living norte-americano e difundido no meio profissional brasileiro do período (Irigoyen, 2005; Hormain, 2012)– e os analisa em paralelo a projetos de casas realizadas na cidade de São Paulo nos anos de 1950. Parte-se do pressuposto de que a caracterização e análise comparativa destas casas auxiliam na identificação de princípios projetuais afins e/ou particularidades e permitem discutir em que medida diferenças identificadas se relacionam a traços típicos do modo de morar de cada país.
A casa, programa arquitetônico dos mais corriqueiros e presente em todos os tempos, reflete o modo como indivíduos e sociedade se organizam e como se desenvolvem as relações na esfera de vida privada e de vida social em cada período. A casa é abrigo, responde às condições climáticas do local em que se insere, é estruturada em função das atividades que deve atender e ainda em função do perfil dos indivíduos que nela habitam. Nesse sentido, considera-se que a natureza dos laços e as posições de hierarquia estabelecidas entre moradores de uma casa repercutem diretamente na sua configuração (Douglas, 1991).
Nesse sentido, parte-se da compreensão de que a casa constitui local privilegiado para observação das relações entre espaço e estrutura social. A ação de separar, induzir ou controlar o acesso a determinados espaços, segundo o grupo de usuários (p. ex. família/empregado/visitante) se relaciona com costumes correntes e padrões culturalmente aceitos (Holanda, 2013).
As casas norte-americana do segundo pós-guerra destinavam-se a família nuclear de classe média, sem contar com o apoio de empregados domésticos. Jacobs (2015) menciona que, na ausência de empregados domésticos, as tarefas cotidianas passaram aos cuidados da dona de casa, o que implicou, entre outras, na transformação da cozinha, que se tornou mais ampla e mais integrada aos ambientes de salas, além de incorporar a comodidade dos eletrodomésticos, visando minimizar o peso das tarefas domésticas. A cozinha aberta e o quintal destinado ao lazer e contemplação tornaram-se os centros da vida familiar (Jacobs, 2015; Penick, 2007; Colomina, 2007; Bonnemaison & Macy, 2003).
No caso brasileiro, as revistas especializadas, as revistas de atualidades, bem como as revistas femininas1 desempenharam um importante papel na circulação dos valores norte-americanos, atuando como fonte de inspiração para novos modos de morar. Segundo Irigoyen (2005, p. 86) “a arquitetura e o modo de vida americanos devem grande parte de sua penetração no Brasil à matéria impressa”. A autora menciona a circulação, entre estudantes e profissionais, de revista como Architectual Forum, Architectural Record e Arts & Architecture, que dedicavam espaço às mudanças que vinham ocorrendo no modo de vida americano desde antes do final da Segunda Guerra.
O ideário da boa vida moderna, no entanto, foi interpretado e adaptado para atender, sobretudo, aos anseios de uma classe média e média-alta, urbana e intelectualizada, composta por profissionais liberais e funcionários públicos, que correspondiam também à principal clientela consumidoras das novidades vindas dos EUA. Conforme apontado por Janjulio (2015):
Essa modernidade (inspirada no modo de vida americano), percebida inicialmente nos dois maiores centros urbanos brasileiros, Rio de Janeiro e São Paulo, (...) contrastava com um Brasil ainda rural. As profundas transformações por que passava a sociedade brasileira conviviam com valores e hábitos conservadores, cultivados no cotidiano das famílias, alguns relacionados à moralidade e às mulheres. (p. 60)
A partir desse conjunto de considerações, desenvolve-se uma narrativa amparada na análise comparativa entre 04 casas do programa CSH e 04 casas realizadas na cidade de São Paulo, nos anos 1950, elegendo-se o ambiente da cozinha como fio condutor da discussão. Para além das leituras mais recorrentes, apoiadas na observação de aspectos funcionais e técnico construtivos e/ou nas suas repercussões de natureza plástico-formal, busca-se melhor compreender como as interações entre contexto, usos e categorias de usuários refletem na organização espacial das casas e averiguar a repercussão da permanência do trabalho doméstico nas casas paulistas. Desse modo, espera-se contribuir para ampliação do debate acerca do espaço doméstico moderno e das variadas formas de manifestações da arquitetura moderna no segundo pós-guerra.
A boa vida moderna, das discussões sobre a casa do pós-guerra ao Programa Case Study House
O ideário de sociedade próspera, tinha na família nuclear sua base de organização fundamental. Os anos de 1930 tinham sido marcados pelos efeitos da grande depressão, os anos de 1940, marcados pelo envolvimento com a Segunda Guerra, que durou até meados de 1945. No início da década de 1950, o cenário era de estabilidade e abundância econômica. Segundo Bill Bryson (2007), em suas memórias da infância:
Não consigo imaginar época ou lugar mais gratificante para se estar vivo do que a América nos anos 1950. Nenhum país jamais conhecera tamanha prosperidade. Quando a guerra terminou, os Estados Unidos tinham 26 bilhões de dólares em fábricas inexistentes antes da guerra, 140 bilhões em poupanças e bônus de guerra só esperando para serem gastos, nenhum estrago de bomba e praticamente nenhuma concorrência. Tudo o que as companhias americanas tinham de fazer era parar de construir tanques e encouraçados e começar a construir Buicks e Frigidaires –e, rapaz, construíram para valer. Por volta de 1951 (...) quase 90% das famílias americanas possuíam geladeira, e quase três quartos tinham máquina de lavar, telefone, aspirador de pó e forno elétrico ou a gás– coisas sobre as quais a maior parte do resto do mundo só podia fantasiar. (Bryson, 2007, p.13)
O clima de otimismo marcou uma rápida mudança para um novo tipo de domesticidade, a vida familiar assumiu uma importância central na sociedade, a idade média para as mulheres se casarem era de 20 anos, as taxas de divórcio se estabilizaram e a taxa de natalidade dobrou, um fenômeno que ficou conhecido como baby boom. A estrutura familiar nos anos 1950 girava em torno de uma necessidade central: uma vida segura, expectativa que se materializava na casa própria, construída em bairros suburbanos. De acordo com Boucher (2013), “a vida nos subúrbios americanos é fundamental para a compreensão da identidade nacional no período pós-guerra”2 (tradução nossa).
Em janeiro de 1945, meses antes do final do conflito, a revista californiana Arts & Architecture lançou o Programa Case Study House, e em tom de manifesto o seu editor, John Entenza, anunciava:
Como a maioria das opiniões, tanto profundas quanto superficiais, em termos da moradia do pós-guerra não passa de especulação sob a forma de conversas e resmas de papel, ocorre-nos que pode ser uma boa ideia ir aos casos e pelo menos começar a reunir esse material que deve, eventualmente, resultar no que conhecemos como “casa do pós-guerra”. Concordando que toda a questão está cercada de condições sobre as quais poucos de nós têm qualquer controle, certamente podemos desenvolver um ponto que pode conduzir a um fim prático. É com isso em mente que agora anunciamos o projeto que chamamos de Programa CASE STUDY HOUSE. (Arts & Architecture, janeiro de 1945, tradução nossa)3
Ainda na apresentação do programa CSH, John Entenza enfatizava que a escolha dos oito arquitetos/escritórios4 nacionalmente renomados para os primeiros estudos de caso se dera não apenas em função de sua reconhecida competência, mas, sobretudo, da habilidade que teriam de avaliar, de modo pragmático, a casa em termos de necessidade. Tal ressalva talvez visasse contornar a ojeriza do público médio norte-americano à casa moderna (Larson, 1993). No entanto, segundo Smith (2009), foram as predileções de Entenza que determinaram as diretrizes do programa, e tais predileções, contaminadas por razões subjetivas e comerciais, naturalmente não sintetizavam todas as tendências de arquitetura doméstica em vigor para a classe média, público-alvo do programa.
O lançamento do programa CSH encerrava um ciclo de debates em torno do tema da casa ideal para o período do pós-guerra que vinha acontecendo no âmbito da própria publicação. Em 1943, a revista realizou o concurso Design for Post-War Living e em 1944 promoveu a Annual Small House Competition. O resultado do concurso de 1944 foi divulgado em fevereiro de 1945, no mesmo número de Arts & Architecture em que foi publicada a primeira proposta para a CSH nº 1, projeto de Julius Ralph Davidson. Coincidência ou não, fechava-se o ciclo de debates e especulações e iniciava-se o ciclo de realizações práticas com o programa Case Study House.
O programa CSH se insere no contexto dos anos 1940, quando o tema da casa se tornou central no Estados Unidos. Os periódicos, de modo geral, dedicaram amplo espaço ao debate acerca de como deveria ser a casa do pós-guerra. Em 1942, a Architectural Forum promoveu o concurso The new house of 194X. No seu anúncio, chamava a atenção para as mudanças que o final do conflito traria para a vida cotidiana e a importância de refletir e estar preparado para os tempos de paz vindouros. Em 1943, Marcel Breuer apresentou no mencionado concurso Design for Post-War Living, uma proposta de casa binuclear de planta “H” em que organizava o programa doméstico em duas alas –uma para atividades do dia e outra para as atividades da noite– separadas por um pátio, tipo de arranjo que explorou em muitos de seus projetos residenciais nos anos seguintes.
A revista Ladies’ Home Journal, destinada a um público leigo e sobretudo, feminino, publicou, ao longo de 1944, uma série de projetos –plantas e modelos–, sob a chamada de Tomorrow’s Small House. No ano seguinte, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa, NY) organizou uma exposição com este material.5 No catálogo da mostra, Elizabeth Mock (1945) ressaltava a importância de se refletir sobre a noção de Small House e alertava que mais de um milhão novas casas seriam necessárias a cada ano após a guerra, um desafio, até então, sem precedentes na história da construção civil norte-americana.
As exposições e as revistas desempenharam um importante papel na divulgação e defesa da arquitetura moderna junto ao público médio americano. É neste quadro que o programa Case Study House merece destaque, ao transcender o estágio do debate sobre a casa do pós-guerra e assumir o desafio de colocar ideias em prática e construir casas-modelo nas quais fossem incorporados novos materiais da indústria, sobretudo, metais, plástico e vidro, bem como componentes pré-fabricados, visando baixo custo e flexibilidade de soluções construtivas e do arranjo espacial, com a finalidade de proporcionar comodidade e conforto associados à boa vida moderna.
Durante as mais de duas décadas em que o programa CSH esteve em atividade (1945-1966), a Arts & Architecture publicou 36 projetos, organizados em três séries cronológicas, dos quais 25 foram executados.6 A primeira etapa (1945-1949), corresponde aos anos de estruturação do programa e contou com a participação de arquitetos mais experientes, com destaque para a contribuição de nomes como Richard Neutra, Eero Saarinen e Charles Eames. A segunda etapa (1950-1960), com o programa já bem estabelecido, corresponde ao período de maior experimentação e contou com a participação de jovens arquitetos, com destaque para as figuras de Craig Ellwood e Pierre Koenig. A terceira etapa (1961-1966) se desenvolveu sem a presença de Entenza, que se afastou da direção da revista em 1962, nesta fase, o programa CSH voltou-se prioritariamente para propostas de maior escala e estudos de conjunto.
Os primeiros anos do programa foram os mais difíceis, a revista manteve a regularidade de apresentar a cada mês uma nova proposta de CSH, mas, apenas na edição de julho de 1946 foi publicada a primeira casa construída, a CSH nº 11, projeto de Julius Ralph Davidson. O intervalo entre publicar um projeto e levar a cabo sua execução exigia muitos esforços –eram necessários, além do projeto, o local para implantação, clientes dispostos a abrir suas casas a uma temporada de visitação antes de as habitar, estabelecer parcerias com a indústria para estimular a incorporação de novos materiais e/ou técnicas– um conjunto de ações que, somente com o passar do tempo e com a visibilidade que o programa alcançou, foram transcorrendo com mais agilidade.
Nesse meio tempo, para impulsionar o programa, o próprio Entenza investiu na aquisição de uma grande área em Pacific Palisades (CA). No local, construiu para si a CSH nº 9, projetada por Charles Eames e Eero Saarinen7 e, em um lote adjacente, o casal Eames projetou e construiu para si a CSH nº 8. As casas inauguraram o uso do aço e marcaram a transição da primeira para a segunda etapa do programa CSH. São projetos peculiares, com programas que expressavam o estilo de vida de seus proprietários –intelectuais e artistas ricos, entusiastas da arquitetura e do design modernos– um casal sem filhos, os Eames e um homem solteiro, Entenza, ou seja, uma composição peculiar, que se reflete na singularidade das duas casas quando comparadas aos demais exemplares do programa.8
O programa CSH foi um dos marcos da sociedade de consumo do pós-guerra. As casas eram anunciadas como um produto para produção e consumo de massas. Cada exemplar trazia uma cuidadosa articulação entre as imagens publicadas, texto e publicidade. Sabe-se que o propósito inicial de construir casas-modelo que pudessem ser replicadas a baixo custo não se concretizou, apenas a CSH nº 11 foi repetida e reapresentada como a CSH nº 15, apesar disso, não resta dúvida quanto à sua notável repercussão, funcionando se não como um modelo para repetição, como uma referência de um certo esquema de organização de casa moderna e de uma nova domesticidade.
O principal legado do programa CSH no debate acerca da casa do pós-guerra transcende a atração exercida por sua estética, sendo mais significativa sua contribuição no estabelecimento de um novo marco de flexibilidade no trato do uso residencial (Cuesta, 2009), materializado na maior integração entre os espaços, a exemplo da cozinha aberta para os ambientes sociais ou das amplas esquadrias corrediças em vidro, conectando diretamente interior e exterior, resultado do esforço de dissolução do confinamento entre as atividades. Para Esther Mc Coy (1989), havia um ambiente favorável nos Estados Unidos naquele período “no qual o Programa Case Study House floresceu, e inaugurou um novo capítulo no projeto de casas com dois quartos, dois banheiros, para famílias sem empregados, com um ou dois filhos –a típica família do pós-segunda guerra nos Estados Unidos” (Mc Coy in Smith,1989, p.18).
Figura 1. Redesenho – Case Study House nº 8 e Case Study House nº 9. Banco de dados: Habitar Moderno e Habitar Contemporâneo (HM + HC), Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória - Universidade Federal da Paraíba (LPPM/UFPB).
As Case Study Houses promoveram um conjunto de ideias relacionadas à boa vida americana e podem ser consideradas um fenômeno de comunicação. Esther Mc Coy (1977), argumenta que a Arts & Architecture projetou a cidade de Los Angeles no cenário internacional e atuou como o principal canal de disseminação de informações culturais sobre a Califórnia. Segundo Kaplan (2011) o estado da Califórnia e seu “living in a modern way” converteu-se na fonte mais importante da arquitetura e do design progressistas da América e suas inovações em bens de consumo ajudaram a transformar a vida moderna americana em meados do século XX. Nesse sentido, vê-se que a vinculação do programa CSH a um periódico especializado de prestígio internacional como Arts & Architecture assegurou uma ampla circulação dessa produção (Travers, 2014).
O American Way of Life e o Brasil nos anos 1950
Desde os anos de 1940 os Estados Unidos vinham desenvolvendo ações de aproximação com países da América Latina, vislumbrando o Brasil e o México como importantes aliados (Del real, 2012). A política da “Boa Vizinhança” (1933-1945) fez parte de um conjunto estratégias políticas e econômicas norte-americanas que pavimentaram o caminho para intercâmbios mais estreitos entre o Brasil e os Estados Unidos nas décadas seguintes (Tota, 2000; Atique, 2007). Na esfera cultural, pode-se considerar a participação do Brasil na Feira The World of Tomorrow, em Nova Iorque (1939); as exposições realizadas no Museu de Arte Moderna (MoMa, NY)9 e a produção cinematográfica de Walt Disney10 The three caballeros (1944), como as iniciativas mais conhecidas (Liernur in Guerra, 2010).
A década de 1950 corresponde a um período de profunda transformação na sociedade brasileira. Como outros países latinos, o Brasil passava pela ampliação de suas bases de infraestrutura, com o desenvolvimento do setor industrial. O intenso crescimento dos centros urbanos e a consolidação da sociedade de massa no país trouxe consigo mudanças no estilo de vida das famílias, influenciadas por modelos difundido pelas revistas, pelo cinema –sobretudo norte-americano– e pela televisão, inaugurada no país no início da década.
A ampla oferta de eletrodomésticos e demais novidades em produtos e utensílios destinados a uma vida moderna e confortável deixa transparecer os ânimos da época, por outro lado, as consequências práticas dos benefícios materiais associados ao American Way of Life foram mais discretas no Brasil quando comparados à experiência norte-americana. Embora a intensa publicidade de eletrodomésticos e de objetos de decoração e mobiliário de design moderno, comprove a valorização do ideário de “viver bem” nos anos de 1950, o acesso a tais facilidades se deu de modo gradativo11 e em grande medida foi restrito à uma parcela da população com maior poder aquisitivo, habitantes dos grandes centros urbanos.
A historiografia da arquitetura moderna no Brasil relata que foram sobretudo os modelos europeus e particularmente os Corbuserianos que influenciaram, desde cedo, as realizações brasileiras (Bruand, 2002; Comas, 2002). O modelo europeu é apontado como referência também para realizações no campo da habitação social, como destacam as pesquisas de Bonduki (2004) e Bruna (2010).
Mais recentemente, a partir especialmente do estudo de Segawa (2002) que aponta para outras modernidades, fontes alternativas de referência para arquitetura realizada no Brasil têm sido consideradas, em particular aquelas oferecidas pelo diálogo entre os Estados Unidos e o Brasil. Uma série de trabalhos tem contribuído para construção de uma melhor compreensão desse amplo quadro de contatos, circulação de ideias, referências e profissionais entre os dois países. (Comas e Adriá, 2003; Irigoyen, 2005; Hormain, 2012; Segawa e Atique, 2013; Janjulio, 2015; Campos, 2015).
No campo da arquitetura, as revistas especializadas desempenham um papel fundamental na circulação de ideias (Irigoyen, 2005; Hormain, 2012; Janjulio, 2015). Vale mencionar que a troca de referências entre arquitetos brasileiros e norte-americanos se dava de modo bidirecional. No período de vigência do programa Case Study House, iniciado em janeiro de 1945, Oswaldo Bratke, com o projeto de sua Casa-Atelier na Rua Avanhandava, foi o primeiro arquiteto latino-americano a ser publicado em Arts & Architecture, na edição de outubro de 1948. Oscar Niemeyer, já famoso à época, apareceu nas páginas da revista em março de 1949, com o projeto da Casa Tremaine (não construída), mesma edição em que foram publicadas a CSH nº 3 (já concluída) e CSH nº 8 (em obras).
Por outro lado, na edição de julho de 1953, a Revista Acrópole publicou uma resenha sobre o catálogo da exposição Built in USA: post-war architecture (1952),12 de autoria do arquiteto Rodolpho Ortenblad Filho, que elogiava os trabalhos publicados, destacando a “reafirmação do talento dos grandes mestres e pioneiros do movimento moderno –Neutra, Gropius, Mies, Aalto e Wright”, bem como a inclusão de obras de arquitetos americanos mais jovens. Havia ainda a informação de que o material exposto no MoMa (NY) viria para Bienal de São Paulo13 daquele ano. O autor concluía a resenha com o seguinte comentário:
Esperamos que a análise dos mesmos seja proveitosa para nossos arquitetos tão arraigados nos princípios estabelecidos por Le Corbusier. Por menor que seja a influência que venhamos a receber, sempre será um sopro de ar fresco revigorante no ambiente já viciado de academicismos decadentes e arquiteturas fáceis. (Ortenblad Filho, p.121)
Havia, de fato, um grande interesse pelo que se produzia nos Estados Unidos. Alinhado ao clima da época, nas páginas de Arts & Architecture, as casas do CSH exibiam as virtudes de uma nova domesticidade, mais relaxada, mais informal, centrada na família e na valorização do contato com a natureza. As imagens e textos, sempre bem articulados, apresentavam as propostas de modo didático, descrevendo os materiais empregados, a lógica da organização espacial e a praticidade das soluções adotadas. Para Comas (2003, p. 21), “a qualidade das Case Study Houses mostra o que pode acontecer quando certa ideia de casa se torna o tipo emblemático de um sonho de boa vida”.
O ideal doméstico norte-americano de praticidade e conforto, presente nas ideias difundidas pelo programa CSH alcançou ampla repercussão no contexto brasileiro e foi acompanhado com especial atenção em São Paulo, “cidade aberta às diversas tendências internacionais” (Irigoyen, 2005, p. 11).
É certo que o desenvolvimento desta referência no contexto paulista não se traduz em mera extensão do que se realizava nos Estados Unidos. Na historiografia do movimento moderno fala-se sempre de adaptações, sobretudo, aquelas devidas ao clima, às peculiaridades do lugar, e às limitações técnicas. Somam-se às adaptações decorrentes do atendimento aos condicionantes do lugar e clima, aquelas vinculadas à ordem social. Segundo Carlos Lemos:
O ato de morar é uma manifestação de caráter cultural e enquanto as técnicas construtivas e os materiais variam com o progresso, o habitar um espaço, além de manter vínculos com a modernidade também está relacionado com os usos e costumes tradicionais da sociedade. (Lemos, 1989, p. 7)
Adriana Irigoyen (2005), uma das primeiras autoras a estudar, de modo amplo e sistemático, a presença de referências norte-americanas na casa moderna paulista, no período de 1945 a 1960, aponta que os exemplares por ela estudados apresentam em maior ou menor grau, “afinidades com as inovações funcionais, técnicas e formais introduzidas na esfera doméstica pelos modelos norte-americanos” (Irigoyen, 2005, p. 11). Entre as particularidades identificadas nas casas paulistas, a autora menciona a adaptação do setor de serviço como um dos maiores desafios enfrentados pelos arquitetos locais ao tentar incorporar a experiência norte-americana à casa moderna paulista.
Enquanto nos Estados Unidos a ausência de empregadas domésticas motivou mudanças no arranjo espacial, particularmente na reestruturação da cozinha, no Brasil dos anos 1950, a regra era ter empregadas domésticas desempenhando as tarefas e residindo nas casas em que trabalhavam. Na casa americana do pós-guerra a cozinha se ampliou e se abriu gradativamente para os ambientes de vivência. No contexto brasileiro, a cozinha permaneceu como território da empregada doméstica, daí as casas modernas paulista demandarem uma setorização funcional mais rigorosa entre os ambientes do convívio familiar e o setor de serviço que tendia a consumir mais área e ser mais isolado.
Em estudo anterior, sobre as especificidades da casa moderna no Brasil em relação à Europa e aos Estados Unidos, Marques (1999) utilizou o hoje clássico conceito sociológico de “modernização conservadora” aplicando-o ao espaço residencial. A autora menciona como as aparências enganam e que a permanência de grandes zonas de serviços –em edículas ou adossadas às casas, sinalizam a repercussão da permanência do trabalho doméstico no projeto residencial brasileiro.
Acrescenta que os processos construtivos seriam aspectos também atrasados ou conservadores da nossa modernização, o que acompanharia, no plano social, os moldes da família brasileira, a exemplo do que sugere DaMatta (1997). De uma maneira ampla, a autora comenta que no Brasil a modernidade é expressa na fachada, enquanto nos Estados Unidos a modernidade é expressa na cozinha, aberta, equipada e integrada à área social.
Visando compreender possíveis aproximações e particularidades entre casas do programa CSH e casas modernas paulista dos anos 1950, recorreu-se ao instrumento da análise comparativa de uma amostra composta por 04 casas do Programa CSH e 04 casas paulistas dos anos 1950, descritas no quadro 2.
Quadro 2. Casa Selecionadas. Produção autoral.
Limitando-se às duas primeiras etapas do programa CSH (entre 1945 e 1960), dedicadas a promoção de casas unifamiliares, foram publicados 26 projetos dos quais 20 foram executados. Buscando compor uma amostra representativa, apesar de reduzida, foram selecionadas apenas casas que foram construídas e cujos arquitetos contribuíram com um maior número de estudos de caso para o programa.14 Desse modo, têm-se a CSH nº 1, proposta do arquiteto Julius Ralph Davidson, que deu início ao programa e a CSH nº 20/1, do arquiteto Richard Neutra, que fecha a sua primeira etapa. Completam a amostra dois exemplares da segunda etapa –a CSH nº 16/2 do arquiteto Craig Ellwood e a CSH nº 22, do arquiteto Pierre Koenig, que encerra o ciclo de estudos de caso de casas isoladas do programa.
Para compor a amostra de casas realizadas em São Paulo partiu-se de menções presentes na bibliografia consultada que, indicavam a aproximação e/ou o interesse dos arquitetos selecionados pela produção doméstica norte-americana (Segawa e Dourado, 1997; Brasil, 2007; Irigoyen, 2005). Paralelamente e de modo complementar pesquisou-se os projetos de casas unifamiliares publicados nas edições da Revista Acrópole ao longo da década de 1950.15 Do cotejamento entre as fontes consultadas foram selecionadas a Casa no Morumbi, de Oswaldo Bratke; a Casa em Santo Amaro, de Arnaldo Furquim Paoliello; a Casa em Indianópolis, de David Libeskind e a Casa em Indianópolis, de Alberto Botti e Marc Rubin.
Tomando-se por referências as considerações de Marques (1999) e Irigoyen (2005) e distanciando-se de modelos analíticos que privilegiam aspectos de natureza formal e/ou técnico construtivos, aqui, elege-se o ambiente da cozinha como fio condutor da discussão, buscando melhor compreender como as interações entre diferentes contextos, usos e categorias de usuários refletem na organização espacial das casas e averiguar a repercussão da permanência do trabalho doméstico nas casas paulistas. Amparada na leitura das plantas baixas dos exemplares selecionados, analisa-se a configuração do ambiente da cozinha, sua articulação com demais ambientes e sistemas de acesso e circulação.
Estudos de Caso: quatro casas CSH e quatro casa paulistas
As CSH selecionadas apresentam programa de necessidades bastante semelhantes e em acordo com as prescrições do período –casas com dois quartos e (preferencialmente) com 2 banheiros para família de renda média norte-americana.
As casas CSH nº 1 e CSH nº 20/1 apresentam dois acessos de pedestre, um conduzindo diretamente às salas e outro ao serviço/cozinha. Na CSH nº 1, a partir do hall de entrada é possível ir diretamente para quartos, para as salas ou para a cozinha sem sobreposição entre os estes percursos. Na CSH nº20/1, o hall de entrada dá acesso ao amplo ambiente de salas, a partir do qual se pode acessar um pequeno hall posicionado ao centro da casa, que dá acesso aos quartos, ao banheiro e/ou à cozinha.
Figura 2. Casas do Programa Case Study House: (a) CSH nº 1, (b) CSH nº 20/1, (c) CSH nº 16/2, (d) CSH nº 22. Cuesta (2009) editadas pela autora.
Nas casas CSH nº 16/2 e CSH nº 22, o acesso de pedestre é único. Na casa CSH nº 16/2, a partir do hall é possível acessar o ambiente de salas ou se dirigir lateralmente e acessar a cozinha. Na CSH nº 22, ao transpor o portão de acesso, o visitante de depara com a piscina, elemento que domina o interior do lote e é no entorno desta que a casa se organiza em L. Para acessar a casa percorre-se uma passarela sobre a piscina, que passa em frente aos ambientes dos quartos antes de conduzir a um pequeno hall, localizado quase em frente à cozinha, a partir do qual se pode acessar os quartos, se dirigir à cozinha ou seguir para o ambiente de salas. Há ainda a possibilidade de prosseguir na passarela externa que contorna a piscina e acessar, mais adiante, o ambiente de salas.
Nos quatro exemplares do programa CSH verifica-se eliminação do “jantar formal” –a tradicional sala de jantar configurando um cômodo isolado. Nestas casas, o jantar se integra ao ambiente de estar (living), sem paredes divisórias, com a presença eventual de algum elemento de mobiliário presente entre um e outro ambiente –a exemplo da lareira presente na CSH nº 22.
Quanto à configuração da cozinha e sua relação com os ambientes de convívio, observa-se que na CSH nº 20/1 a cozinha permanece mais isolada e tem dimensões modestas. Na face voltada para o jantar, apresenta uma pequena abertura acima da bancada da cozinha que cumpre mais a função de passa-pratos e pouco favorecer o convívio entre sala e cozinha.
Na CSH nº 1, na face voltada para o jantar, a cozinha apresenta uma abertura entre os armários superiores e a bancada, em toda sua extensão, o que proporciona uma integração visual parcial entre os ambientes. Uma das laterais da cozinha se abre para um ambiente com uma banca para refeições (breakfast) que conta com uma generosa esquadria em vidro que dá acesso ao terraço de refeições externo. Esse arranjo, permite uma condição de permeabilidade visual mais generosa ao ambiente de cozinha da CSH nº 1. Como é possível observar no diagrama da Figura 2 (a), sua localização é estratégica, a partir da qual é possível se dirigir à porta de entrada, ao quintal, ao pátio de serviço ou à garagem, funcionando como um posto de controle e comando da casa.
Na CSH nº 16/2, uma bancada para refeições conecta o ambiente do jantar com a cozinha. A abertura acima dessa bancada é generosa, pois não há armários superiores. Assim como na CSH nº 1, a posição da cozinha é estratégica e permite à dona de casa se deslocar rapidamente para os demais cômodos da casa. O fechamento de um dos lados se faz com uma ampla esquadria de correr, de piso à teto, que dá acesso ao pátio de brincadeiras das crianças, solução que resulta em uma cozinha mais aberta e com melhores condições integração com ambientes de convívio.
Na CSH nº 22, na ala mais longa do L, estão dispostos em sequência o estar, o jantar e a cozinha, que se configura como uma ilha de design e comodidade. Tem estrutura independente, é solta do teto e aberta nas laterais que se voltam para as faces da casa com fechamento em esquadria de vidro de piso a teto, proporcionando de um lado, vista para a área da piscina, e do outro, vista para a paisagem de Hollywood Hills. Na face voltada para o jantar, apresenta uma bancada para refeições, com uma abertura superior em toda sua extensão. Armários planejados com eletrodomésticos embutidos compõem o fechamento da face oposta ao jantar. A cozinha da CSH nº 22 tem uma posição estratégica, uma condição de permeabilidade visual em todas as direções e está à altura da radicalidade que costumam atribuir à própria casa, elogiada pelo emprego dos materiais sem disfarce, pela exposição dos componentes metálicos e a profusão dos fechamentos em vidro.
Diferente das CSH, que integravam um programa com diretrizes pré-estabelecidas, as casas paulistas selecionadas foram projetadas para famílias com perfis variados –a maioria composta por casais com 2 ou 3 filhos, exceto pela Casa em Indianópolis (A. Botti e M. Rubin), projetada para um casal sem filho. Apresentam programa de necessidade com diferentes níveis de complexidade e circunstâncias de implantação variadas –casas urbanas construídas em lotes relativamente compactos, a exemplo da Casa em Santo Amaro, de Arnaldo F. Paoliello e a Casa em Indianópolis, de A. Botti e M. Rubin; casas construídas em bairros-jardim, em lotes de dimensões generosas, a exemplo da Casa no Morumbi, de Oswaldo Bratke.
Em toda as casas paulistas da amostra as cozinhas são isoladas, não apresentam aberturas para outros ambientes de salas além da(s) porta(s) que lhes dão acesso. Na Casa em Santo Amaro a cozinha dá acesso direto ao jantar. Nas demais casas, verifica-se a existência do ambiente da copa ampliando a distância entre o jantar e a cozinha. A descrição é breve, pois, como menciona Irigoyen (2005, p. 247), nas casas modernas paulistas “as cozinhas, embora equipadas, ficavam confinadas ao âmbito do serviço. A cozinha americana, integrada à sala nunca foi bem-vinda em uma sociedade que ainda conservava padrões de vida tradicionais.”
Dito isto, convém ampliar a compreensão acerca da repercussão da manutenção dos chamados “padrões de vida tradicionais”. No período em estudo era costume as empregadas domésticas residirem nas casas em que trabalhavam e, provavelmente, essa prática concorre para que se dispensassem estratégias de abertura e permeabilidade visual entre as áreas de salas e a cozinha. A persistência do trabalho doméstico na sociedade brasileira implica nesse isolamento da cozinha e na consequente demanda por quarto(s) e banheiro(s) de serviço, bem como na necessidade de acessos e circulações especializados, requisitos que resultam em casas com um setor de serviço de maiores dimensões –quando comparadas a exemplares norte-americanos do mesmo período.
Verifica-se que em todas as casas paulistas, o quarto de empregada é contíguo à cozinha ou à área de serviço. Nas casas no Morumbi, Figura 3 (a) e em Santo Amaro, Figura 3 (b), o quarto de empregada está integrado ao corpo principal da casa. Na casa projetada por David Libeskind, Figura 3 (c), verifica-se a existência de um acesso ligando a área de serviço –onde também se localizam dois quartos de empregadas– ao corredor íntimo dos quartos da família, uma solução certamente destinada a facilitar o acesso para limpeza e arrumação dos quartos sem a necessidade de cruzar os ambientes de salas. Por outro lado, para se ir da cozinha para este setor de serviços, é necessário atravessar o pátio descoberto e externo ao corpo da casa. Na casa projetada por A. Botti e M. Rubin, Figura 3 (d), um pátio lateral dá acesso à área de serviço e ao quarto de empregada que fica no fundo do lote, colado em uma das divisas laterais e na divisa posterior.
Figura 3. Casas Paulistas: (a) Casa no Morumbi, (b) Casa em Santo Amaro, (c) Casa em Indianópolis (David Libeskind), (d) Casa em Indianópolis (A. Botti e M. Rubin). Redesenho da autora.
Nas casas paulistas, apesar de família e empregada compartilharem do convívio cotidiano, constituíam categorias de usuários distintas, cabendo à família, particularmente ao pai/dono da casa o controle sobre a casa e à família e à mãe/dona de casa, o gerenciamento da rotina das empregadas e os cuidados com os filhos. Esse convívio assimétrico, regulado por sucessivas camadas hierárquicas repercute na existência de acessos separados –entrada social e de serviço–, na localização do quarto da empregada no setor de serviço, que em geral se localizam em áreas que recebem maior insolação e pouco recomendadas para cômodos de longa permanência. Repercute ainda nos acabamentos, destinando-se materiais mais nobres aos locais de permanência da família e/ou visitas. Em outras palavras, o lugar de cada grupo social se expressa na organização espacial e na aparência da casa.
A boa vida moderna, versão “brazilian way of life”
O presente trabalho se debruça sobre uma amostra reduzida de casas e nesse sentido, não pretende fazer generalizações, mas suscitar discursão. Ao adotar uma lente que privilegia a observação das práticas sociais e aspirações da clientela em detrimento de discussões mais correntes que se guiam pelos discursos vigentes no campo da arquitetura, a análise comparativa apresentada permite vislumbrar uma trama mais complexa de relações entre estas casas, indicando que o limites entre afinidades e diferenças é sutil; demonstrando que adaptações aparentemente decorrentes de aspectos funcionais, carregam implícitas motivações da esfera dos costumes.
Se nas Case Study House as grandes esquadrias de correr das salas se abrem para o quintal (os fundos), nas casas paulistas é quase regra que as salas se abram para o jardim (frontal). Se nas casas norte-americanas a cozinha é o centro do convívio familiar, nas casas brasileiras, as salas são os ambientes da família. Os grandes painéis de vidro são semelhantes, mas a lógica é distinta, de um lado, casa de cozinhas e quintais, do outro, casas de jardins e salas de estar.
A importância da cozinha em casas norte-americanas quando comparada ao contexto do Brasil é claramente perceptível por meio da análise das revistas especializadas. Nas matérias sobre as Case Study Houses publicadas em Arts & Architecture, sempre constavam fotografias do ambiente da cozinha. No caso da revista Acrópole, uma das fontes consultadas sobre as casas paulistas do período, imagens de ambientes de cozinha eram praticamente inexistentes, tinha-se com frequência fotografias do exterior, exibindo a fachada principal, juntamente àquelas de ambientes de salas com vista para o jardim.
A breve análise apresentada deixa transparecer como nas Case Study Houses as cozinhas ocupam posição estratégica nas plantas. O emprego de soluções com aberturas para as salas, bem como, a proximidade com os terraços, se tornam mais recorrentes com o passar do tempo, contribuindo para difusão de estratégias de integração que minimizam o isolamento da dona de casa enquanto está engajada nas atividades domésticas, além de serem bem equipadas.
Este trabalho decorre de uma pesquisa mais ampla (Vidal, 2019),16 que desde o início se debruça sobre essa aparente contradição, de que casas concebidas segundo a valorização de espaços como cozinhas e quintais tenham sido tomadas como referência para elaboração de casas que atendiam a uma lógica de funcionamento e dinâmica de convivência familiar bastante distintas e ainda apoiada na presença de empregadas domésticas.17
Fernando Lara (2008, 2009, 2018) discute a amplitude da disseminação e assimilação da referência moderna nas casas de classe média, nas quais a ampla utilização do vocabulário moderno se fazia presentes nas fachadas, em contraposição a arranjos espaciais atravessados pela persistência de modos de vida mais tradicionais.
Se, por um lado, a incorporação de novos materiais, a ênfase na horizontalidade dos volumes e a valorização da transparência presentes em casas paulistas dos anos 1950 podem ser lidas como uma modernidade afinada com as realizações das CSH, por outro lado, e em contraste, a presença de empregadas domésticas, em conjunto com tratamento dado às suas acomodações junto às áreas de serviço e em alguns casos, apartadas do corpo principal da casa, evidenciam, como bem argumenta Holanda (2013, p. 219) que, “à uma separação física corresponde uma separação social”. Nos anos 1950, a cidade de São Paulo é um dos centros urbanos do país, no entanto, nas casas modernas do período, prevalecem os velhos tanques e não as modernas máquinas de lavar e secar.
O breve olhar, lançado a partir do ambiente da cozinha, permite vislumbrar na reduzida amostra de casas paulistas, uma mescla contraditória de anseios de progresso e apegos à modos e valores tradicionais. Na prática, a domesticidade que se pretendia moderna, esbarra e não atravessa a porta da cozinha. No “brazilian way of life” a boa vida moderna acolhe e convive pacificamente com suas contradições sociais.
Notas
1 As escolas brasileiras de arquitetura recebiam regularmente revistas norte-americanas, tais como, Architectural Record, Architectural Forum, Pencil Points. Tanto na Escola Politécnica de São Paulo quanto na Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie havia assinatura da Arts & Architecture, promotora do programa CSH, desde o primeiro número, quando ainda se chamava Califórnia: Arts & Architecture. As revistas com temas do cotidiano, como a Life Magazine e a Seleções Reader’s Digest, que em suas páginas celebravam o American way of life, tinham grande circulação entre a classe média urbana no Brasil. (Irigoyen, 2005; Hormain, 2012; Janjulio, 2015). Sobre a importância das revistas femininas na formação do gosto e comportamentos desejáveis nos anos 1950, ver Pinsky, 2014.
2 No original: American suburb life is fundamental to an understanding of national identity in the post war period.
3 No original: Because most opinion, both profound and light-headed, in terms of post war housing is nothing but speculation in the form of talk and reams of paper, it occurs to us that it might be a good idea to get down to cases and at least make a beginning in the gathering of that mass of material that must eventually result in what we know as "house - post war”. Agreeing that the whole matter is surrounded by conditions over which few of us have any control, certainly we can develop a point of which might come to a practical end. It's with that in mind that we now announce the project we have called THE CASE STUDY HOUSE PROGRAM.
4Julis Ralph Davidson, Richard Neutra, Spaulding and Rex, Wurster and Bernardi, Ralph Rapson, Whitney Smith, Thornton Abell, Charles Eames e Eero Saarinen.
5 A exposição Tomorrow’s Small House foi realizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque entre 28 de maio e 30 de setembro de 1945.
6 O acervo digital com todas as edições de Arts & Architecture dedicadas ao programa Case Study House está disponível em: http://www.artsandarchitecture.com/case.houses/index.html (acesso em 20 de outubro de 2022).
7 Além das CSH nº 8 e CSH nº 9, foram construídas no local: a CSH nº 18/1, projeto de Rodney Walker e a CSH nº 20/1, projeto de Richard Neutra. Há registro de construção de uma segunda casa projetada por Richard Neutra, a CSH nº 19/1, porém, em virtude de alterações realizadas pelos primeiros proprietários a casa não foi incluída no programa. (Buisson & Billard, 2004).
8 A CSH nº 8, hoje mais conhecida como Eames House, é sem dúvida o exemplar mais famoso do programa CSH, seguida pela CSH nº 22, (Stahl House), amplamente conhecida pelas imagens de Julius Shulman.
9 Twenty Centuries of Mexican Art (1940); Brazil Builds (1943) e Latin American Architecture since 1945 (1955).
10 The three Caballeros (1944) foi a primeira produção de Walt Disney a combinar animação e cenas reais (live-action), o filme narra as aventuras do Pato Donald (natural dos EUA) na América Latina na companhia dos amigos Zé Carioca (natural do Brasil) e Panchito (natural do México). No Brasil, o filme recebeu o título: “Você já foi à Bahia?”
11 No Brasil, a incorporação dos eletrodomésticos de deu de modo lento, em virtude dos preços altos e mediante a disponibilidade de mão de obra para realização dos serviços domésticos a custos módicos.
12 O catálogo apresenta 43 Projetos, dos quais 19 são casas construídas entre 1948 e 1952 (44%). Duas casas são do Programa Case Study House – CSH nº 8 de Ray e Charles Eames e a CSH 1950 de Raphael Soriano. A exposição Built in USA: postwar architecture (1952) foi divulgada na Revista Acrópole (julho, 1953), 183, 120-121.
13 As fotografias da I Exposição Internacional de Arquitetura realizada em paralelo à I Bienal de SP (1951) foram também expostas no 8º Congresso Pan-americano, realizado no México em 1952, assim como fotografias da exposição do MoMa/NY (1952), foram expostas na Bienal de 1953 (Lins, 2008).
14 O arquiteto Julius Ralph Davison projetou duas versões para a CSH nº 1 e a CSH nº 11. No presente trabalho, analisa-se a proposta para CSH nº1 que foi construída. O arquiteto Richard Neutra elaborou proposta para a CSH nº 6 e CSH nº 13 (não construídas) e para a CSH nº 20/1. Para saber mais sobre a relação de Richard Neutra com o Brasil ver: Campos, 2015. O arquiteto Craig Ellwood elaborou os projetos da CSH nº 16/2, CSH nº 17/2 e CSH nº 18/2 (todas construídas). Ellwood participou da II Exposição Internacional de Arquitetura de 1953, realizada em paralelo à II Bienal de São Paulo e foi premiado na categoria Habitação Coletiva como projeto de Apartamentos em Hollywood (Lins, 2008). O arquiteto Pierre Koenig contribuiu com os projetos da CSH nº 21 e CSH nº 22 (ambas construídas).
15 O acervo digital da Revista Acrópole está disponível em http://www.acropole.fau.usp.br/ (acesso em 20 de outubro de 2022)
16 As casas apresentadas no presente trabalho integram a amostra de sessenta casas estudadas pela autora em sua tese de doutorado (Vidal, 2019).
17 Vale ressaltar que as empregadas domésticas constituíam uma categoria profissional pouco valorizada e mal remunerada, seja pela ausência de proteção e regulação legal, seja pela oferta abundante de mão de obra, especialmente nos anos em estudos, quando grandes contingentes populacionais se deslocaram para os centros urbanos em busca de melhores condições de vida.
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Wylnna Vidal
Arquiteta e Urbanista. Doutora em Atquitetura e Urbanismo. Programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo. Universidade Federal da Paraíba (PPGAU/UFPB). Professora Adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (DAU/UFPB). Professora colaboradora do PPGAU/UFPB. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória, DAU/UFPB. Centro de Tecnologia, Campus I, Cidade Universitária. João Pessoa, Brasil. CEP: 58051-900.
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https://orcid.org/0000-0001-5014-1301
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