REGISTROS, ISSN 2250-8112, Vol. 18 (2) julio-diciembre 2022

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A boa-vida do moderno entre nós...

 

Francisco Sales Trajano Filho

Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, Brasil

Editor responsable del número

 

 

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The new client of this new architecture is the ordinary citizen

Philip Will, Mid-century architecture in America (1961)

 

 


A quem servia a arquitetura moderna? Ou, noutros termos, qual sua “clientela”? Embora pareça impertinente atualmente, essa questão ocupou o núcleo do debate arquitetônico nas primeiras décadas do século XX, em especial para arquitetos ideologicamente engajados na transformação social através da arquitetura. Em virtude desse compromisso, a versão mais coerente para essa pergunta, nos anos 1920, assumia uma forte coloração revolucionária, investida como era do sentido de disputa pelo futuro: Wem Gehört die Welt? A quem pertence o mundo? E a resposta a ela, como nos lembra Anatole Kopp, era inequívoca: “ao povo, às massas, aos trabalhadores, ao maior número” (Kopp, 1990, p. 22).

O ceticismo contemporâneo frente a qualquer projeto coletivo de vida e sociedade talvez explique o descrédito dessa agenda revolucionária tão cara aos “primeiros modernos” do começo do século passado, ainda mais depois que a alquimia moderna de transformar quantidade em qualidade revelou-se fracassada, conforme Koolhaas. Não se pode ignorar, no entanto, o fato de que a arquitetura, antes de instrumento revolucionário, funcionou muitas vezes, mesmo para setores da vanguarda, como agente de dissuasão dos impulsos revolucionários, de apaziguamento dos ânimos mais exaltados. “Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução!” bradava Le Corbusier em 1923 (Le Corbusier, 1998, p. 205).

A despeito dos limites e falácias do projeto moderno em arquitetura, que acabaram por restringir a “ascensão da arquitetura a funções novas e superiores” (Kopp, 1990, p. 22), a envergadura da ação construtiva de vanguarda conectou, não sem contradições, dois polos extremos em sua clientela. De um lado, a classe trabalhadora e sua demanda por moradia, profundamente acentuada no quadro das transformações materiais e produtivas do capitalismo industrial. De outro, certos representantes da elite intelectual, artística e econômica, aficionados da arte e da arquitetura progressista, para quem a vanguarda criou versões atualizadas do morar aristocrático.

Nas décadas seguintes ao fim da segunda guerra mundial, o interesse despertado pelo homem comum, do “ordinary citizen” do arquiteto norte-americano Philip Will, ao “the man in the street”, de J. M. Richards, sinaliza a entrada em cena de uma nova clientela para a arquitetura moderna. Em termos igualmente massivos, mas esquivando-se tanto do Existenzminimum mais radical quanto das villas ilustradas, as camadas médias foram atraídas para a utopia do morar moderno, a ser alcançada não por meio da revolução, de todo modo evitada, mas por meio da ampliação do acesso aos bens de consumo da sociedade afluente, em expansão global no contexto dos les trente glorieuses.

Sem alcançar níveis de desenvolvimento socioeconômico equiparáveis aos países desenvolvidos do Hemisfério Norte, do final da segunda guerra mundial à virada para a década de 1980, a realidade latino-americana apresentou, ainda que de forma heterogênea, patamares de crescimento econômico e mudanças na ordem social significativos. Embora não tenha superado a desigualdade estrutural que historicamente assola a região, os “trinta gloriosos”, expressão cunhada pelo demógrafo francês Jean Fourastié em 1979 e reivindicada pelo economista Albert Hirschman como pertinente também ao caso latino-americano, levaram ao crescimento econômico, ao aumento da renda per capita, aos avanços na industrialização e à expansão das camadas médias (Hirschman, 1987). Em conjunto, essas mudanças impulsionaram a emergência de uma distendida sociedade afluente, ávida por usufruir das benesses associadas à modernidade. Tudo isso em meio a acelerados processos de urbanização e crescimento populacional combinados com a concentração massiva das parcelas mais pobres da sociedade em favelas, barriadas e villas miseria, precariamente atendidas por infraestrutura e serviços públicos.

É nessa realidade de alto contraste, de progresso econômico e desigualdade social persistente, que a América Latina se constitui como o “laboratório moderno” em matéria de arquitetura. Mais além do “fenômeno Brasil”, disparado a partir da exposição Brazil Builds (1943), a arquitetura moderna se difundiu pelo continente, manifestando-se em praticamente todos os estratos sociais. Em sociedades onde construir não era só possível como necessário, fosse através do Estado ou por intermédio de promotores privados, a envergadura da produção arquitetônica moderna latino-americana não encontra paralelo noutras paragens, como atesta a última exposição do MoMa dedicada ao tema, Latin America in construction, de 2015 (López, 2015).

Tal êxito, contudo, não encontra uma explicação satisfatória se o considerarmos apenas como resultado da ação pública e de setores da elite econômica e intelectual dos países, ambos representantes da clientela de primeira hora da arquitetura moderna. Vital ao entendimento do grau de permeabilidade social, de popularidade mesmo, alcançada pela arquitetura moderna nas sociedades latino-americanas é a adesão de uma classe média robustecida que passa a enxergar nessa arquitetura um artefato a mais no mercado de bens materiais e simbólicos a consumir. Na esteira da expansão das possibilidades de aquisição de bens de consumo duráveis, como automóveis, televisores, refrigeradores, telefones, aparelhos de rádio e outros confortos modernos, a arquitetura moderna adentra o universo das camadas médias, tornando-se, ela também, um item de distinção social a ser buscado.

Por apropriações que nem sempre, ou em percentual mínimo, passavam pelo acesso ao trabalho formal de arquitetos, engenheiros e profissionais afins, o vocabulário formal e o discurso modernos foram ajustados em acomodações que buscavam superar o hermetismo estético e conceitual intrínseco à forma moderna, e assim comunicar valores e gostos associados à cultura de massa emergente, contra os quais, em grande parte, havia se insurgido em sua origem.

Essa questão já se colocava como uma preocupação no imediato pós-guerra entre arquitetos ligados aos CIAMs. De diferentes maneiras, a aproximação com o mundo cotidiano, com a cidade e a sociedade reais, com a “vida nas ruas”, em contraponto à idealizada sociedade corbusiana do homem-tipo, norteia várias proposições revisionistas que embalam o debate em torno do Movimento Moderno no período. E romper a já constatada antipatia do homem comum com a estética moderna era uma tarefa que se colocava na ordem do dia.

“O arquiteto precisa se preocupar com as reações do homem da rua?”, perguntava-se J. M. Richards em depoimento recolhido por Sigfried Giedion em A decade of new architecture (1951). Refletindo sobre a relação entre a arquitetura contemporânea e o homem comum (common man), para Richards a arquitetura moderna precisava ajustar seu curso para evitar “o perigo de se tornar uma arte do tipo apreciada somente por connoisseurs”. A alternativa a isso supunha adequar os “produtos visíveis do pensamento arquitetônico moderno” às aspirações cultivadas por essa nova clientela (Richards, 1951. p. 39). Pode-se alegar, com razão, que a percepção do que seja esse homem comum da parte de Richards e seus anseios destoam profundamente da natureza dos processos culturais de apropriação e transformação a que foram submetidas as formas modernas no trânsito para seu consumo mais indiscriminado. Isso porque, na busca por respostas, Richards manteve-se preso aos limites dos circuitos disciplinares e eruditos da arquitetura, deixando de fora dos esquemas explicativos o papel desempenhado pela esfera do consumo associada à publicidade na formação do gosto.

Entender o “sucesso” do moderno na América Latina em uma perspectiva ampliada supõe enveredar por um caminho explicativo que transpõe as fronteiras do campo profissional  e  disciplinar  e  seus  canais  de  publicização  usuais,  de interesse restrito a especialistas e iniciados em matéria de arquitetura, para reconhecer o funcionamento de  estratégias  de  consumo  e  formação  de  gosto  dirigidas  ao  público  em  geral,  em  meio  à incipiente sociedade de consumo que se configura em escala continental na segunda metade do século XX.

Supõe também trazer para a interpretação a contribuição de agentes diversos, pouco ou nada coordenados, que operaram à margem dos circuitos de distinção da esfera erudita da arquitetura, ao mesmo tempo em que exploravam habilmente, para fins midiáticos e comerciais, as formas livres e pouco ortodoxas que moldaram a imagem dessa arquitetura. 

Com graus variáveis, dependendo muito, obviamente, da expansão da arquitetura moderna em cada realidade nacional, estratégias midiáticas diversas foram mobilizadas no sentido de generalização do vocabulário formal moderno, fazendo com que extrapolassem o circuito das primeiras realizações exemplares, públicas ou privadas, para a larga disseminação entre as camadas médias e populares.

Identificada ao processo mais geral de modernização por que passam as sociedades latino-americanas, a arquitetura moderna funcionou como um índice de uma modernidade almejada. Por meio dessa identificação, a representação do moderno em arquitetura é tensionada desde fora dos circuitos eruditos e das instâncias de exposição, debate e legitimação da arquitetura moderna.

Esvaziada em grande parte de sua carga ideológica e vínculos políticos, simplificada em seus atributos estético-formais, uma aproximação à arquitetura moderna seria assumida por essa nova classe de clientes privados como fator capaz de propiciar certo grau de distinção social, instigando o desejo em participar do imaginário a ela associado. 

Entre os agentes cujos papéis na larga aceitação da arquitetura moderna em âmbito latino-americano precisam ser adequadamente considerados, estão o aparato midiático e publicitário, as indústrias de materiais de construção, tintas, acabamentos, instalações, além de empresas de mobiliário e objetos de decoração. Talvez só levando em conta as funções desses agentes possamos entender a disseminação social dessa arquitetura quando a reação comum frente a ela noutros contextos foi de amplo rechaço.

Sem que seja em si uma novidade, a expansão de políticas editoriais voltadas a leitores não-especializados interessados em “consumir” arquitetura moderna nas condições possíveis ganhou um forte incremento no decorrer da segunda metade do século XX. Revistas, livros e catálogos etc. operaram, de modo diligente, na conversão do moderno em valor, simbólico e cultural, em um trabalho de persuasão junto a parcelas crescentes da população, ansiosas por partilhar de formas de viver e morar identificadas com a modernidade em termos sociais e estéticos. É no interior desse aparato, pulverizado em inúmeros e distintos veículos da mídia impressa, que se pode constatar o funcionamento de estratégias de negociação cuja finalidade não é outra senão tornar mais palatável e acessível os atributos associados à modernidade na arquitetura para uma nova clientela constituída por setores crescentes da classe média urbana em grande parte desprovida do cabedal intelectual e cultural para um acurado entendimento dos aspectos estéticos, técnicos e formais da renomada e erudita arquitetura moderna.

Nas páginas dessas publicações o conteúdo abrangia do desenho ideal de uma casa moderna, os cuidados com o lar e seus ambientes, o mobiliário, o design de interiores e o cultivo de uma domesticidade que se pretendia plenamente moderna, ainda que atravessada por arcaísmos persistentes, sobretudo de natureza social. Em tom semelhante, a promoção dos edifícios de apartamento, loteamentos privados e moradias de final de semana e férias, entre outros temas, convergiam em uma atmosfera propícia ao deleite estético identificado com a arquitetura moderna.

No intuito de incorporar esse universo profícuo de meios, agentes e estratégias para investigar a peculiar popularidade e difusão da arquitetura moderna na América Latina, essa edição de Registros explora a convergência entre arquitetura, mídia e consumo na configuração de novas formas de construir, morar e viver em sociedades em franca transformação no embalo das imagens, e das miragens, que a modernidade e a modernização não cessam de produzir.

O primeiro artigo, de Ana Paulina Matamoros Vences, investiga a conceituação de habitação para as classes médias na capital mexicana através da mensagem publicitária de tornar-se proprietário, com a aquisição da casa própria consolidada como símbolo cultural da ascensão econômica.  A autora analisa a publicidade centrada no tipo de oferta que se promove bem como na sua localização, de forma a ter uma dimensão dos vários custos de compra ou construção de casa. Como derivação disso, além disso, adota uma série de categorias que permitem compreender a dinâmica habitacional intraurbana dos setores médios e seu impacto no crescimento urbano da Cidade do México.

Atenta aos jogos de aparência tão comuns na esfera social, nos quais o objeto arquitetônico funciona como forte marcador de status, o trabalho de Dely Bentes investiga as residências de veraneio publicadas na revista Casa & Jardim, esse vetor fundamental de disseminação do moderno no Brasil, na década entre 1977 e 1986. Por meio de estereótipos formais, o artigo analisa como essas residências exploram lugares discursivos afinados com a ideia de um bem-viver das classes média e alta, pontuados por noções de conforto, contato com a natureza e simplicidade, a serem usufruídos na praia ou no campo, longe dos inconvenientes dos centros urbanos, parte do imaginário associado a formas distintivas de morar.

Também explorando a revista Casa & Jardim como objeto de investigação, o artigo de Maristela Janjulio atém-se ao lugar da publicidade na conformação da incipiente sociedade de consumo no Brasil da década de 1950. O recurso à propagandas na difusão de novos objetos, hábitos e desejos de consumo configura parte essencial do rearranjo das formas de viver e consumir da ascendente classe média brasileira no horizonte do nacional-desenvolvimentismo do governo JK.

Construída na primeira metade dos anos 1950, a residência projetada pelo arquiteto Oswaldo Arthur Bratke para Maria Luisa e Oscar Americano, é analisada no artigo de Joana Mello. Com atenção nas relações entre arquiteto e cliente, o artigo investiga a negociação de uma domesticidade moderna e de práticas de morar em que se põem em jogo valores profissionais e demandas de clientela, no contexto de difusão social da arquitetura moderna para além dos circuitos especializados.

A casa Cruz, projetada pelo arquiteto Fabio Cruz para seu pai, em Santiago do Chile, é o objeto de investigação de Anna Braghini e Mia-Sue Carrère O trabalho analisa a obra desde sua concepção espacial, considerando que este foi o ponto de partida, acima dos aspectos programáticos, formais e construtivos. Seu estudo busca lançar novas interpretações acerca das ideias de domesticidade e da relação com o ambiente urbano que circulavam na cultura arquitetônica moderna chilena no final dos anos 1950.

Já em seu artigo, Wylnna Vidal adentra o espaço doméstico para investigar, em uma perspectiva comparativa, o lugar e os sentidos da cozinha em residências norte-americanas e brasileiras projetadas entre as décadas de 1940 e 1960. O artigo discute as interações entre contexto, usos e categorias de usuários na organização espacial das casas para constatar, no caso dos exemplos brasileiros, a persistência de modos e valores conservadores na organização interior das residências analisadas, reveladoras, a contragosto, dos limites da recepção e adaptação de ideias norte-americanas ao contexto brasileiro.

Ramiro Patrício Agustín Piana estuda as galerias comerciais no cotidiano de Buenos Aires na segunda metade do século XX. Vistas como espaços de modernização urbana e indutores de novas formas de interação no contexto do consumo, as galerias introduziram uma arquitetura moderna emergente não apenas na sociedade de consumo do segundo pós-guerra, mas também nas práticas cotidianas de lazer, passeio e sociabilidade, contribuindo assim para mercantilizá-las. Em tal contexto, as publicações de arquitetura e revistas de interesse revelam o papel de mediação exercido pelas galerias em uma rede mais ampla de entidades que articulavam a sociedade de consumo portenha.

Fechando esta edição de Registros, Silvio Plotquin acompanha a constituição da figura do arquiteto moderno na Argentina. Por meio da análise da retórica do marketing e da publicidade em revistas profissionais de arquitetura, o artigo investiga as sucessivas metamorfoses desse sujeito, da imagem de especialista a de executivo refinado e bon vivant, em um cenário moldado por mudanças profundas nas formas de acesso e consumo em meio à modernização do país e da sociedade argentina no pós-Segunda Guerra.

A despeito da singularidade de cada artigo, o conjunto dos trabalhos reunidos nesta edição de Registros permite reconhecer várias das estratégias e rotas traçadas no percurso que conduziu a arquitetura moderna, no contexto da América Latina, de uma produção restrita a certos círculos sociais e de poder, para se constituir em um item cobiçado por uma clientela alargada no quadro de constituição sociedade afluente local.  Longe de ser um processo espontâneo, de natureza “popular”, a disseminação dessa arquitetura foi, sobretudo, resultado da convergência de distintos esforços e agentes.  E, portanto, entender as práticas de indução e formação de gosto para uma clientela não-iniciada em matéria de arquitetura supõe deslocar o campo habitual em que se analisa a produção moderna para interpretar sua circulação e imersão no reino do consumo e suas lógicas.

 

Referências

Hirschman, A. O. (1987). A economia política do desenvolvimento latino-americano. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1(3), 37-55.

Kopp, A. (1990). Quando o moderno não era um estilo, e sim uma causa. Nobel: Edusp.

Le Corbusier (1923) [1998]. Por uma arquitetura. Perspectiva.

López, A. (2015). Still Constructing... “Latin America in Construction: Architecture 1955–1980,” The Avery Review, (8). http://averyreview.com/issues/2/still-constructing

Richards, J. M. (1951). Contemporary architecture and the common man. En S. Giedion, A decade of new architecture (pp. 39-40). Editions Girsberger.

 


Francisco Sales Trajano Filho

Arquiteto, Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. Professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. Avenida Trabalhador São-Carlense, 400, Centro 13566-590, São Carlos SP, Brasil.

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