Artículos                                                                         REGISTROS, ISSN 2250-8112, Vol. 20 (1) enero-junio 2024: 25-41

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O concurso como campo fértil para as ideias e as tensões na América Latina

A experiência do PREVI em Lima

The Competition as a Fertile Field for Ideas and Tensions in Latin America: The Experience of PREVI in Lima

 

Guilherme Amorim Cavalcanti

Mariana Fialho Bonates

Wylnna Carlos Lima Vidal

Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Paraíba, Brasil

 

 

Resumo

A partir da experiência do concurso internacional do Plano Piloto I (PP1) do Proyecto Experimental de Vivienda (PREVI), este artigo propõe uma reflexão acerca dos concursos de projeto como arena para a manifestação de ideias e palco de tensões no território latino-americano na segunda metade do século XX. Realizado no final dos anos 1960, o PREVI coloca a América Latina em destaque internacional, apresentando-se como um condensador dos debates em torno do tema da habitação social e da realidade de informalidade e autoconstrução em Lima, Peru. Marcada pelo crescimento desordenado das cidades e, consequentemente pelos assentamentos espontâneos em forma de barriadas ou favelas, os problemas urbanos da América Latina eram percebidos pelo olhar estrangeiro como um campo propício de estudos e experimentação de teorias e ideias, potencializadas no PREVI pela adoção do concurso como ferramenta. Um conjunto de publicações recentes denotam um renovado interesse para essa experiência. A abordagem do intercâmbio local e internacional presente na base do PREVI em paralelo com as dinâmicas características dos concursos de projeto possibilitou ampliar reflexões acerca das particularidades e trazer à tona tensões presentes na relação entre centro e periferia latentes na experiência.

Palavras-chaves: concursos, PREVI-Lima, América Latina, habitação social

 

Abstract

Based on the experience of the international competition for Plano Piloto I (PP1) of the Proyecto Experimental de Vivienda (PREVI), this article proposes a reflection on project competitions as an arena for the expression of ideas and a stage for tensions in Latin American territory in the second half of the 20th century. Held in the late 1960s, PREVI places Latin America in the international spotlight, presenting itself as a condenser of debates around the subject of social housing and the reality of informality and self-construction in Lima, Peru. Marked by the disorderly growth of cities and, consequently, by spontaneous settlements in the form of barriadas or favelas, the urban problems of Latin America were perceived by foreigners as a favorable field for studies and experimentation of theories and ideas, enhanced in PREVI by the adoption of the competition as tool. A set of recent publications denote a renewed interest in this experience. The approach to local and international exchange present in the PREVI base in parallel with the dynamics characteristic of project competitions made it possible to expand reflections on the particularities and bring to light tensions present in the relationship between center and periphery latent in the experience.

Keywords: competitions, PREVI-Lima, Latin America, social housing



 

Introdução

Este trabalho propõe uma reflexão do instrumento dos concursos de projeto, no qual o caráter aberto e institucionalizado atua como palco para a manifestação de ideias emergentes e arena de possíveis tensões. Os concursos de arquitetura se destacam como um mecanismo de seleção que busca a melhor resposta, ao menos na perspectiva temporal e espacial do júri, para um conjunto de demandas, de múltiplos interesses, nem sempre convergentes. Em essência, e na origem da palavra, concurso representa a reunião de pessoas em um mesmo local ou, nesse caso, em prol de um mesmo objetivo, sendo uma modalidade de encontro e conflito de ideias, o qual visa expandir e vislumbrar as possibilidades de resposta para uma mesma demanda (Muñoz, 2005). Nesse sentido, desloca-se o protagonismo da valoração dos projetos e arquitetos participantes para a conformação de uma arena propícia ao debate coletivo, em que diferentes ideias sobre as complexidades dos edifícios e das cidades podem ser representadas (Muñoz, 2005). Em suma, pode-se considerar uma competição de soluções projetuais e não necessariamente de arquitetos.

Aproximando da realidade latino-americana, a modalidade dos concursos tem papel fundamental no desenvolvimento e consolidação do movimento moderno e, consequentemente, apresentam presença relevante no desenrolar do século XX (Gonzáles e Fernández, 2012). Um dos exemplos emblemáticos dos concursos para a busca de soluções na América Latina com a articulação de um número significativo de arquitetos foi o concurso internacional do Plano Piloto I (PP1) do Proyecto Experimental de Vivienda, ou PREVI, realizado no final da década de 1960 e início dos anos 1970 na cidade de Lima, Peru. Além de sua relevância no cenário local e internacional, destacou-se pelos preceitos manifestados nas propostas, assim como pelos envolvidos no processo. De acordo com Carranza e Lara (2015), a singularidade do PREVI se eleva, ainda mais, ao materializar diferentes perspectivas sobre as questões urbanas, estilísticas e da moradia, abarcando uma multiplicidade de arquiteturas pós-modernas emergentes no contexto internacional. Afinal, onde mais podemos encontrar casas projetadas por Correa, Kurokawa/Maki, Stirling, Candilis/Josic/Woods e Van Eyck no mesmo lugar? (Carranza e Lara, 2015).

O caráter internacional do concurso, todavia, não se resumiu apenas aos arquitetos envolvidos, mas também se efetuou por meio de figuras como Fernando Belaúnde Terry, Eduardo Neira, Peter Land e John Turner. Com o foco em construir respostas para a crescente demanda habitacional e na melhora de condições de vida dos assentamentos informais já consolidados, ou barriadas, o governo peruano, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), propôs uma abordagem na qual o concurso seria uma ferramenta apropriada para a experimentação de ideias. De acordo com Land (2008), o concurso foi extraordinário, tendo convidado alguns dos mais conhecidos arquitetos de renome internacional e que se dedicavam às discussões sobre o problema da habitação social urbana, que, por sua vez, recebia pouca atenção da prática dominante naquele momento.

O concurso se desenvolveu em um período marcado pela experimentação e aplicação das teorias de modernização e de políticas desenvolvimentistas na América Latina (Gorelik, 2003). Entre as décadas de 1950 e 1970 houve uma eclosão de pensadores, instituições e disciplinas fundamentais para o desenvolvimento de um “novo mapa intelectual, acadêmico e político do pensamento social latino-americano, em um de seus episódios mais ricos e produtivos” (Gorelik, 2003, p.115). É marcante nesse contexto a profusão de ideias e debates de diferentes ordens, com a coexistência de atores estrangeiros e locais, por meio de intercâmbios internacionais. De acordo com Gorelik (2003), o campo de planejamento urbano e regional e as demandas habitacionais foram os principais objetos a receber um exame sistemático, em dia com as principais linhas do debate internacional. Ballent (2004) destaca que, apesar da elaboração de respostas para o problema da moradia ser uma temática constante do arcabouço moderno, é na América Latina, após os anos 1950, que se produzem novas abordagens, a partir do cruzamento das tradições desse campo com os debates políticos e sociológicos acerca do território, sendo o PREVI um exemplar dessa convergência.

No entanto, após a década de 1960, os modelos de desenvolvimento aplicado nos países latino-americanos enfrentam maiores questionamentos no hemisfério norte. As crises globais e locais do período da Guerra Fria, com disputas geográficas e instabilidade política, também se encontram presentes no campo da arquitetura, com jovens arquitetos se articulando para questionar o ideário funcionalista. Em contrapartida, emergem discussões sobre aspectos psicológicos, sociais, culturais, relacionados à memória, à qualidade de vida (Lima, 1999). Além desses aspectos, a valorização das necessidades individuais, da dimensão social da arquitetura e sua conexão com o lugar possibilitaram a ascensão de uma pluralidade dentro do campo arquitetônico. A reverberação desses impactos pode ser percebida nas margens, como, por exemplo, na América Latina, com a diferença de que esse desenvolvimento ocorreu ali sobre uma tensão entre o estrangeiro e o local, além de compartilhar, segundo Waisman (2013), as correntes europeias e norte-americanas do pensamento arquitetônico de modo reelaborado e com atraso.

Enquanto isso, para Lara (2012), o período entre 1960 e 1970 foi marcado por “duas décadas de ostracismo” acerca da presença da produção latina na mídia internacional, movimento associado à maior atenção e crítica aos resultados dos projetos de reconstrução na Europa, concomitantemente à ascensão das ditaduras militares no governo de diversos países da América Latina. Assim, experiências como a do PREVI, em Lima, ou o Bairro Portales, em Santiago, não receberam a devida atenção, sendo erroneamente associados às práticas pós-moderna ou moderna, quando representavam as tentativas locais de responder ao esgotamento do arcabouço moderno clássico (Lara, 2012). Mas até que ponto foram, de fato, tentativas locais e atrasadas em relação às discussões efervescentes no centro? De que maneira as tensões entre local e internacional se estabeleceram no concurso do PREVI? Quais são as particularidades desse concurso?

De acordo com Alonso (2015), é por conta do caráter experimental direcionado a uma problemática comum à realidade global, sobretudo do território latino-americano, que as propostas do Plano Piloto 1 (PP1) do PREVI se destacam como um dos mais importantes projetos de habitação. Para Lara (2018), o experimento peruano adquire significado ainda maior quando pensado o momento de sua proposição, apenas alguns anos após a publicação dos livros de Jane Jacobs (1961) e Robert Venturi (1966), fundamentais para mudanças no pensamento arquitetônico e urbanístico, e colocando em prática as ideias do Team X que, naquele momento, faziam parte da vanguarda no pensamento sobre o planejamento urbano e a dimensão social da habitação, de modo que a América Latina estaria novamente no protagonismo. De acordo com Mateo (2016):

o estudo de caso do PREVI foi uma das primeiras ocasiões em que o planejamento informal gerou uma resposta do discurso arquitetônico regular da época, baseado nos preceitos do Modernismo Tardio e do TEAM X, que influenciou muitos dos arquitetos e urbanistas envolvidos.

Em suma, práticas como o PREVI demonstram tanto a força dos debates locais e assimilação das discussões internacionais, quanto o potencial de experimentação que os concursos possibilitam. A partir das tensões presentes no contexto latino-americano, materializadas especialmente nas relações local e internacional, este trabalho propõe lançar um olhar sobre a experiência do PREVI à luz das características dos concursos e sua condição enquanto laboratório para o exercício teórico e prático de ideias, caráter esse que é intrínseco à história da América Latina, como apontado por Gorelik (2003).

 

PREVI: o intercâmbio local e internacional na base do processo

A partir da década de 1940 muitas cidades na América Latina passam a enfrentar uma intensa explosão urbana devido aos movimentos de migração interna que se materializa, em grande medida, nos assentamentos informais (Lima, 1999) (Figura 1). Essa problemática promove o interesse em programas desenvolvimentistas nos países latinos, através de processos de ordenação social e habitacional, como nos conjuntos habitacionais que foram colocados em prática e sob a plataforma de disseminação do vocabulário moderno. Apesar dessas iniciativas, na primeira metade do século XX, o cenário ainda apresentava uma forte desigualdade social que, frente à crise da ideologia moderna, constituiu um espaço para a exploração de novas ideias, locais e importadas (Lima, 1999).

 

Figura 1. Assentamento informal em Lima, Peru. Acervo da Junta Nacional de la Vivienda.

 

Assim como outras cidades da América Latina, a realidade urbana da cidade de Lima, capital do Peru, apresentava-se como um resultado de diversos processos físicos e sociais que escalonaram nas primeiras décadas do século XX, com destaque para a intensificação do processo migratório do campo para a cidade e, consequentemente, um aumento na demanda por habitações urbanas, consolidando os assentamentos informais, localmente conhecidos como barriadas. A perspectiva social desse momento apontava para uma cidade dividida, onde os assentamentos informais eram percebidos enquanto um problema econômico para o desenvolvimento, de modo que a cidade planejada e a não-planejada eram categorias socioculturais mutuamente excludentes.

As propostas governamentais para a resolução dessa problemática baseavam-se, então, nos modelos internacionais, sobretudo europeus, de cidade-jardim e dos conjuntos habitacionais de vocabulário moderno, aqui configurados como blocos lineares verticais, distribuídos em torno de espaços verdes e equipamentos coletivos em áreas distantes do centro cívico da cidade (Ballent, 2019). Essa iniciativa foi encabeçada pelo então membro do congresso, Fernando Belaúnde Terry, e utilizada enquanto principal solução para a habitação social até a criação do PREVI.

Formado em 1935 pela Universidade do Texas, Belaúnde foi uma figura central para a disseminação das ideias e práticas modernas no contexto peruano (Ballent, 2019). Após atuar como profissional no México, retornou ao Peru e fundou, em 1937, a revista El arquitecto peruano, que se consolidou como plataforma de divulgação das práticas internacionais, e o Agrupamento Espacio,1 junto de outros arquitetos. Em 1943 tornou-se professor da Universidade de Lima, e entre 1945 e 1948 atuou como deputado, pleiteando em favor da criação de instituições voltadas para a habitação popular e ao planejamento urbano. Essa atuação contribuiu para sua eleição ao cargo de presidente do Peru em dois momentos, 1963-68 e 1980-85, períodos marcados pela sua posição desenvolvimentista (Carranza e Lara, 2015) e implementando ideias econômicas e políticas que circulavam internacionalmente.

No final da década de 1950 o cenário das barriadas, enquanto uma “praga” da cidade, começa a ser transformado com estudos mais aprofundados acerca dessa realidade e a partir de novas perspectivas fundamentadas na pluralidade local, resultando em interseções com a cidade tradicional, a cultura local e a periferia popular. O Censo Geral das Barriadas de 1956 é o primeiro desses movimentos que aproxima a realidade da periferia através de dados e análises realizadas por profissionais das ciências sociais, reverberando na formulação de Normas para a Solução dos Problemas das Barriadas Periféricas em 1958 e a Lei Orgânica de Bairros Periféricos em 1961, que já antecipavam pontos que fundamentariam a iniciativa do PREVI, como a autoconstrução e as possibilidades oferecidas pela assistência técnica (Ballent, 2019).

Convidado pelo arquiteto peruano Eduardo Neira, John Turner, arquiteto inglês, teve contato com o tema da autoconstrução.2 Ainda no Peru, onde permaneceu de 1957 até 1965, trabalhou junto ao antropólogo norte-americano William Mangin3 nas barriadas de Lima, onde adquiriu a vivência para se consolidar enquanto um excelente comunicador da realidade peruana “num momento em que a reflexão sobre a construção popular ou tradicional ganhava lugar como fonte de renovação da arquitetura moderna” (Ballent, 2019, p. 295). A realidade diversa e autoproduzida dos assentamentos informais viria a inspirar Turner a escrever sobre essa realidade na revista inglesa, de circulação internacional, Architectural Design (1963), questionando as intervenções tradicionais e destacando o caráter das moradias, a gestão habitacional e a autoconstrução.

A coexistência e o diálogo entre os locais e estrangeiros na América Latina, marcantes na segunda metade do século XX, como apontado por Gorelik (2003), e o retorno de diversos profissionais do intercâmbio, segundo Alonso (2015), mostram-se como peças fundamentais para a mudança de pensamento e a efervescência de ideias que culminam no convite ao arquiteto britânico e consultor das Nações Unidas, Peter Land, que articula com o governo peruano, através do Banco de la Vivienda (Banco da Habitação), as bases para o desenvolvimento do PREVI (Carranza e Lara, 2015).

O PREVI foi uma iniciativa do governo peruano sob o comando do presidente e arquiteto, Fernando Belaúnde Terry, pensado no final da década de 1960 e consolidado nos anos 1970, com o objetivo de melhorar as condições habitacionais existentes. De acordo com Ballent (2019), a abordagem sobre as habitações estava fundamentada nas experiências das barriadas, colocando a casa como uma série de sistemas que se conectam e se desenvolvem ao longo do tempo, ao invés de um objeto único e acabado. A iniciativa buscava estabelecer ações, métodos, modelos e sistemas que pudessem dar respostas embasadas sobre a realidade local e alinhadas com as novas abordagens acerca do papel da arquitetura e urbanismo na consolidação das cidades, simbolizando o auge da mudança acerca dos novos olhares sobre a produção informal do espaço.

Essa experiência começou a ser pensada e discutida em 1966, e foi aprovada um ano depois pelo congresso, consistindo em um conjunto de ações com três vertentes para enfrentar as necessidades habitacionais de Lima: o Plano Piloto 1 (PP1), que utilizaria a ferramenta do concurso para selecionar propostas de habitações unifamiliares progressivas e econômicas para compor um novo bairro da cidade; o PP2, alinhado com as práticas de assistência técnica que estavam se desenvolvendo no país, buscando viabilizar as intervenções nos âmbitos arquitetônicos e urbanos dos assentamentos já existentes; e o PP3 que funcionaria como a preparação de áreas desocupadas, com infraestruturas e uma organização espacial prévia, para o surgimento de novas habitações espontâneas4 (Alonso, 2015).

Peter Land foi fundamental para trazer o apoio da ONU em setembro de 1968, que, através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), atuaria enquanto um órgão de mediação com o contexto internacional no concurso para o PP1, mas, sobretudo, enquanto apoio técnico e articulador de um mecanismo financeiro que viabilizaria de forma sustentável o processo (Lara, 2018). Alonso (2015) pontua que esse acordo foi firmado após um estudo de que as demandas habitacionais presente em Lima eram compartilhadas por outras nações em desenvolvimento, como diversas cidades da América Latina.

Porém, sendo o território latino-americano marcado pelas rupturas e descontinuidades,5 a presidência de Fernando Belaúnde Terry é interrompida por uma intervenção militar em outubro de 1968, com Juan Velasco Alvarado assumindo a presidência sob um discurso de soberania nacional. Apesar disso, o PREVI teve continuidade e em 1969 foi lançado o concurso previsto no PP1.

 

PREVI: o concurso e o intercâmbio local e internacional na circulação de ideias

Uma das principais características dos concursos é a possibilidade de exercitar e colocar em pauta as ideias e os debates que existem no interior do campo arquitetônico, e que não encontram espaço para serem amplamente discutidos (Fontes, 2016). Colabora com esse fato à eliminação da mútua relação entre os proponentes e os arquitetos, exigindo que as decisões projetuais tenham sua pertinência e adequação às demandas apontadas pelo edital (Santos, 2019). Para Sobreira (2020) é pela multiplicidade de abordagens que os concursos de projeto apresentam o potencial de revelar a gênese das problemáticas ali colocadas, favorecendo oportunidades de respostas apoiadas sobre diversas visões e posicionamentos, por vezes ignoradas pelos modelos tradicionais de produção arquitetônica.

Esse processo, mediante uma arena pública e o rigor metodológico presente na ferramenta é, para Gonzáles e Fernández (2012), o ponto fundamental para que os arquitetos possam experimentar novas ideias e possibilidades de projeto. Os concursos são, portanto, uma oportunidade para a experimentação do arquiteto em circunstâncias reais, de forma relativamente autônoma das restrições habituais, em que as regras são, ao mesmo tempo, testadas e desafiadas, permitindo maior ousadia (Fontes, 2016). Em um cenário marcado pela pluralidade de ideias no campo disciplinar da arquitetura, como nos anos 1960 e 1970, nada mais apropriado do que um concurso para oferecer espaço para a manifestação dessas discussões, como foi o PP1 do PREVI.

Além deste amplo campo de circulação e experimentação de ideias, os concursos se destacam por serem eventos de natureza democrática que promovem um palco para as diferentes visões, interesses e posições que o campo da arquitetura abrange, independente da escala ou finalidade da demanda do projeto (Sobreira, 2020). Fontes (2016) apresenta três principais variáveis: quanto ao formato de participação, à escala e ao objetivo de proposição. Quanto ao formato, os concursos podem ser realizados de forma aberta, que implica em um maior número de propostas, geralmente submetidas de forma anônima, ou, então, o formato fechado que pode se realizar através de convites ou de uma pré-seleção. Em relação à escala, os concursos podem abranger a amplitude nacional ou internacional de participantes; e, ainda, podem variar se o objetivo final está na ideia como fomentadora de um debate ou na execução da proposta. Independente do caminho escolhido pelos promotores é intrínseca à prática a capacidade de trazer à tona os conflitos latentes das problemáticas abordadas, de modo que a potencialidade da arquitetura pode se revelar mais nos processos e no conjunto de obras alcançado, do que nas propostas escolhidas ao final (Sobreira, 2020).

Resultado de um rico processo, o concurso do PREVI é um exemplar que abrange várias condições como a escala –nacional e internacional– e o formato –modalidade anônima e convite–, o que proporcionou uma multiplicidade de abordagens de projeto, com propostas sintonizadas com as ideias mais contemporâneas de arquitetura e urbanismo. Que outras condições dos concursos se manifestaram no PREVI? Quais são as particularidades desse concurso?

Importa mencionar que os concursos são constituídos pela articulação de três atores: os promotores, os participantes e o júri –todos permeados por uma forte interrelação internacional no PREVI. Os promotores ou clientes, que apresentam a demanda, utilizam-se da ferramenta enquanto uma possibilidade de construir um debate e vislumbrar uma diversidade de ideias, ampliando o universo de propostas alinhadas aos seus interesses, e obtendo destaque na publicização do processo e seus resultados (Fontes, 2016). Para Alves (2019), a ampliação e diversidade podem atuar como ferramenta de instrução e capacidade crítica, de modo que a escolha da obra a ser executada pode ser realizada de forma mais assertiva.

As expectativas ou intenções para o projeto são estabelecidas e traduzidas na forma de um edital, que é a base do concurso e deve conter o material e as informações necessárias para o desenvolvimento das propostas, ou seja, “os critérios de julgamento, normas, pré-requisitos, dados técnicos, programa, conceito do projeto” (Santos, 2019, p.1). Para autores como Sobreira (2009) e Alves (2019), o edital é um dos principais instrumentos na proposição de um concurso, por intermediar a relação entre proponente e arquiteto, sendo um indicativo das expectativas e desejos sobre os quais os arquitetos devem formular suas propostas. Consequentemente, o estabelecimento dessas bases requer um cuidado em apresentar de forma clara e explícita o que se pretende realizar, mas sem restringir a inovação e criatividade dos concorrentes, visto tratar de um processo de apresentação e julgamento das ideias (Sobreira, 2009).

No caso do PREVI, o principal objetivo do concurso, segundo Land, era de lançar bases que refletissem as experiências e a realidade nacional, bem como a adoção, adaptação e transformação das ideias mais importantes em habitação coletiva e sistemas de pré-fabricação do mundo desenvolvido (Kahatt, 2019). Para atender a estes objetivos foram lançados 6 desafios ou princípios de projeto, quais sejam (Land, 2008; Kahatt, 2019):

·       Propor um conjunto de alta densidade, baixa altura e tecido contínuo;

·       Propor as unidades em agrupamentos, formando clusters;

·       Possibilitar unidades com crescimento progressivo, dado, espacialmente, pelo pátio;

·       Desenvolver o projeto paisagístico;

·       Propor um desenho urbano que priorize a escala do pedestre;

·       Utilizar sistemas construtivos pré-fabricados e materiais estandardizados a baixo custo.

O concurso foi delineado para a construção de 1.500 unidades habitacionais, em um terreno de 50ha, situado ao norte da região central de Lima (Kahatt, 2019). Foi solicitada uma proposta urbana esquemática em que as unidades habitacionais, organizadas em clusters, deveriam ser conectadas a equipamentos educativos, sociais e comerciais. As diretrizes do edital especificavam que os lotes deveriam ter áreas entre 80m2 e 150m2, e a área construída inicial das casas entre 60m2 e 120m2 para permitir sua expansão em até três pavimentos, com base no módulo de 10 centímetros inicialmente previsto para facilitar a construção e a produção padronizada (Kahatt, 2019). Também foram solicitados projetos que se desenvolvessem por etapas, indicando o crescimento progressivo, com exemplos de unidades grandes e pequenas em cada cluster, para que a maior pudesse oferecer um guia de projeto e construção sobre possíveis ampliações das unidades iniciais (Land, 2008). Foi demandada, ainda, uma série de requisitos técnico-construtivos como a colaboração de um engenheiro de estruturas, com experiência em projetos resistentes a abalos sísmicos, sistemas construtivos detalhados e com estimativa de custos (Land, 2008).

Desenhada essas condições, entrou em jogo o segundo ator que compõe os concursos: os participantes ou os concorrentes. Na modalidade anônima, utilizada na seleção das propostas locais, destaca-se a oportunidade de alcançar demandas que, em especial para jovens arquitetos dificilmente seriam alcançadas pelos métodos tradicionais de contratação, tornando o concurso uma plataforma para se consolidar no mercado ou alcançar reconhecimento profissional (Fontes, 2016). Para Sobreira e Romero (2017), essa igualdade de oportunidades se apresenta como a maior qualidade da prática, de modo que as relações interpessoais não interferem no processo, e o desenvolvimento de projetos relevantes e coerentes torna-se prioridade.

A etapa PP1 do PREVI, no entanto, foi marcada pela simultaneidade de dois formatos independentes de concurso, em que na primeira fase foi realizada uma seleção internacional em que um seleto grupo de 13 arquitetos estrangeiros foram convidados a participar; e um concurso de caráter nacional, voltado para os peruanos e de modalidade anônima, revelando uma assimetria de oportunidades e até mesmo uma segregação entre os participantes. Para reequilibrar as relações entre internacional e local na fase final do concurso, foram selecionados 13 projetos de arquitetos peruanos. Ao considerar todos estes requisitos, a intenção do concurso era premiar 3 propostas de cada grupo, nacional e internacional. Apesar dos dois formatos, ambos os grupos seguiram o mesmo calendário, regras e conjunto de instruções, que incluíam plantas locais e regionais, dados geográficos e climáticos, informações espaciais e técnicas, área padrão para a casa e o projeto urbana, além de diretrizes de orçamento (Land, 2008).

De acordo com Land (2016), a lista final dos participantes internacionais tinha como objetivos abarcar os arquitetos que estavam debatendo os temas de habitação e planejamento daquela época, além de considerar a experiência e a representação geográfica e política da ONU para consolidar um grupo de diversas origens. Ressalta-se que Land entrevistou previamente os arquitetos convidados em 1968 (Kahatt, 2019). A opção pelo convite na seleção dos arquitetos internacionais denota uma tomada de posição dos proponentes do PREVI, sinalizando sobre quais abordagens recairiam um maior interesse.

Havia, ainda, a preocupação de que os participantes estivessem em contato com a realidade em que estariam atuando, de modo que os arquitetos estrangeiros foram levados para a cidade durante 10 dias, quando estudaram assentamentos espontâneos, projetos habitacionais existentes do governo, visitaram famílias que se enquadravam como público-alvo, discutiram questões financeiras para a execução das obras com o Banco de Habitação e conheceram os materiais e as capacidades industriais locais da cidade, oferecendo um suporte comum dos quais as propostas poderiam partir (Land, 2015).

Por fim, o júri atua na intermediação entre os dois atores anteriores e sobre o qual recai a decisão de interseccionar os interesses dos promotores, expressos no edital, e as respostas construídas pelos arquitetos (Fontes, 2016). Designados pelos proponentes para o papel de selecionar as melhores propostas, a composição do júri é um fator determinante no resultado final. Na maior parte dos casos, o júri está associado a figuras de relevância nas temáticas abordadas pelo edital, nos estudos acerca do local onde se pretende estabelecer a obra ou que apresentem um alinhamento de objetivos com os proponentes.

No caso do PREVI, o júri para avaliação final das propostas refletia a dinâmica dos participantes, sendo composto por 9 jurados e 2 assessores, com 6 peruanos e outros 5 jurados internacionais, sendo a maioria de especialistas no tema da habitação e do planejamento, sendo alguns ligados a entidades como o governo local e a ONU6 (Alonso, 2015). Segundo Land (2008), incluía representantes de organizações governamentais peruanas, da ONU, do PNUD, da União Internacional de Arquitetos (UIA), do Colégio de Arquitetos do Peru e do diretor do projeto da ONU.

Em agosto de 1969, os jurados se reuniram em Lima e concederam seis prêmios: três melhores internacionais e três melhores peruanos, como parte do PP1 do PREVI (Carranza e Lara, 2015). As propostas nacionais premiadas foram de Elsa Mazzaria, Smirnoff-Ramírez e J. Croune com J. Paez e R. Légon; e as internacionais foram do Atelier 5 (Suíça), Kiyonori Kikutake, Fumihiko Maki e Kisho Kurokawa (Japão) e Herbert Ohl (Alemanha). Esse processo, porém, não se deu de forma unânime, visto que junto à ata de julgamento também se fez presente a manifestação de 3 jurados que discordavam do reconhecimento pela proposta alemã, apontando a mesma como de difícil execução e com menores preocupações com o comportamento e as individualidades dos habitantes, alegando que a proposta de Christopher Alexander (USA) deveria ser premiada (Alonso, 2015).


 

 

Tabla

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Tabela 1. Arquitetos participantes do PREVI. Produção autoral.

 

 


Apoiado pelo caráter experimental da iniciativa, pela controvérsia da ata de julgamento e, principalmente, pela qualidade geral de todas as propostas que fizeram parte da seleção final, por fim, o júri consensualmente recomendou a construção de uma pequena quantidade de todos os 26 projetos participantes (Land, 2016). Optou-se, então, pela unidad vecinal experimental, composta por cerca de 500 unidades, cada qual formada por aproximadamente 20 exemplares de cada uma das propostas articuladas em uma configuração urbana que funcionaria como um piloto para outras intervenções –em Lima–, mas também como vitrine para outras cidades na América Latina (Alonso, 2015).

O master plan foi desenhado por Peter Land, mas, segundo Alonso (2015), os arquitetos peruanos Hugo Handabaka, Miguel Alvarino e Alfredo Montagne se encarregaram de organizar o conjunto a partir das diferentes propostas individuais, articulando com equipamentos como a escola, centro comunitário e espaços públicos, através de circulações internas exclusivas para pedestres. Para Land (2016) a unidad vecinal experimental apresentava uma abordagem mais abrangente do ideário funcionalista, ao mesmo tempo em que manifestava mudanças teóricas que haviam se propagado nos âmbitos dos CIAM no segundo pós-guerra, tendo como princípios a escala humana e um ambiente orientado para o pedestre. De acordo com Baumgartner (2016) e Mateo (2016), o resultado final do bairro, dos espaços comuns e dos playgrounds atuava como elemento de coesão na colcha de retalhos e aponta para uma contribuição direta da proposta e das ideias de Aldo van Eyck, membro do Team X e peça fundamental nas discussões daquele momento sobre habitação e planejamento.

As obras das unidades experimentais se iniciaram em 1971 e foram finalizadas em 1975, com 467 unidades construídas (Kahatt, 2019). Nesse intervalo, algumas propostas foram adaptadas para a infraestrutura local e para uma melhor exequibilidade, tendo uma local sido transformada substancialmente, enquanto outra, internacional não foi financiada pelo Banco da Habitação e, portanto, não executada, ambas as operações devido às complexidades técnicas e aos materiais empregados7.

Ressalta-se que não é objetivo deste trabalho avaliar os projetos, mas apresentar brevemente algumas soluções, validadas por um júri qualificado, possibilitando vislumbrar as oportunidades de debates e de tensões entre novas ideias e sua aplicação na prática oferecidas pelo concurso.

Muitas propostas submetidas ao PREVI possuíam relação com o Team X, sobretudo as internacionais, seja por meio da participação no concurso de alguns dos seus integrantes ou arquitetos que tangenciavam o grupo, seja com debates e conceitos elaborados por aqueles no âmbito dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), como a tentativa de incorporar o social e a ideia de comunidade às questões arquitetônicas, assim como o olhar para o tecido urbano e seus espaços intersticiais. De acordo com Alonso (2015), a compreensão da cidade enquanto um tecido composto pela contínua mistura de atividades e usos, ou seja, como uma composição heterogênea mediada pela ação, é um dos conceitos urbanísticos mais relevantes do momento do PREVI, encontrando-se latente em diversas propostas, sobretudo na do holandês, e um dos principais integrantes do Team X, Aldo van Eyck.8 A sua participação no PREVI ficou marcada como a manifestação mais incisiva das novas ideias urbanas propostas no CIAM de 1953, de modo que a trama urbana apresentava uma continuidade a partir das disposições das quadras residenciais, com a distribuição dos comércios, áreas comuns e espaços livres de forma dinâmica, aproveitando-se dos espaços intersticiais.

Nesse contexto, a proposta vencedora do Atelier 5 se destacava ao restringir o local dos veículos na periferia do conjunto, inserindo as unidades de costas para elas, enquanto toda parte interna era dotada apenas de circulação e espaços de convivência voltados para os pedestres, incentivando o contato humano e, ao menos na intenção, o desenvolvimento de uma comunidade mais forte.

Já a proposta dos japoneses, Kikutake, Maki e Kurokawa, utilizou da oportunidade oferecida pelo concurso para manifestar a metáfora biológica que o movimento metabolista, criado por eles, reverberava e que em muito se relacionava com o crescimento espontâneo das cidades latino-americanas, e o caráter progressivo das unidades habitacionais. A proposta, também vencedora do concurso, apresentou, como em outros casos, a concentração da atividade pública e comercial, porém se diferenciou ao dispor isso em um traçado marcado pelas diagonais, estabelecendo um maior equilíbrio e penetração desse conjunto de espaços comuns na malha residencial, organizando-se em pequenas quadras de tamanhos e formas diferentes (Alonso, 2015).

Já o grupo de propostas locais torna-se notável uma maior influência das ideias urbanas consolidadas pelo movimento moderno que, naquele momento, ainda se encontravam em processo de assimilação no território peruano, com diversos arquitetos voltando de experiências no exterior e de professores universitários como o próprio Fernando Belaúnde e Luís Miró-Quesada, mas também através da circulação das revistas. Apesar disso, havia uma tradução daquelas ideias a partir de uma perspectiva local (Alonso, 2015). A separação de funções, a alocação dos usos comuns num eixo central que corta o bairro no sentido longitudinal e o predomínio de malhas com características mais ortogonais são apenas alguns dos pontos que aproximam as propostas dos conceitos modernos, assim como a proposta internacional de Candilis, Josic e Wood, antigos colaboradores de Le Corbusier.

Sobre a disposição urbana e o sistema de circulações presentes nas propostas originais, Alonso (2015) destaca que há uma coesão na prioridade dos pedestres, de modo que a circulação principal de carros estava restrita às vias da borda e a uma circulação interna de menor fluxo, que subdividia o bairro e possibilitava acesso aos bolsões de estacionamento. No entanto, ao lançar um olhar sobre a distribuição das propostas como executado, percebe-se que os clusters internacionais foram preferencialmente dispostos ao longo das vias da borda, enquanto a maior parte dos clusters peruanos encontram-se localizados no centro do conjunto do PP1. Pode-se interpretar essa disposição como uma tentativa de promover uma maior visibilidade aos projetos internacionais, conformando uma espécie de vitrine para o conjunto –como inicialmente planejado para o PREVI (Figura 2). Para Gyger (2013), a reunião das distintas propostas resultou em uma colcha de retalhos vagamente estruturada em torno de uma circulação interna central. E mais, nenhum dos arquitetos foi capaz de concretizar plenamente os seus conceitos urbanos para os agrupamentos residenciais –uma decisão que comprometeu seriamente a integridade das propostas (Gyger, 2013).


 

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Figura 2. Distribuição das propostas internacionais e peruanas. Google Maps (2024) com edição autoral.


Não apenas as abordagens projetuais se distinguem entre os grupos peruano e internacional, mas também as percepções entre eles revelam diferentes olhares em função das suas próprias perspectivas e experiências, como pode ser interpretado a partir das memórias de dois arquitetos, Charles Correa (indiano) e Jacques Crousse (peruano).9 Embora ambos sejam praticamente da mesma geração, apresentam diferenças em relação aos anos de formação: Correa se formou em 1953 nos Estados Unidos e Crousse se formou primeiro em engenharia (1963) e depois como urbanista (1972) no Peru.

Enquanto Correa expressa nostalgia e uma percepção mais positiva da experiência do PREVI, Crousse reconhece a oportunidade da experiência para os arquitetos peruanos, porém identifica os impactos negativos da mudança política na etapa de execução dos projetos, finalizando o relato com um sentimento amargo (Crousse citado em Garcia-Huidobro; Torriti, Tugas, 2008).

Em tom apologético, Correa se dedica a enfatizar a pluralidade de ideias que circulavam naqueles anos, ressaltando a importância do princípio da baixa altura e alta densidade (BAAD) nas habitações coletivas de baixa renda. Expressa, ainda, que o projeto PREVI foi sincronizado para servir de modelo, não só no Peru, mas em todos os países da América do Sul e também na África e na Ásia (Correa, citado em Garcia-Huidobro; Torriti, Tugas, 2008).

Já Crousse valoriza o potencial do concurso como um teste para os sistemas de pré-fabricação que deveriam demonstrar sua validade para uma média de 20 residências por projeto, porém também demostra que a forma como o concurso foi executado não logrou o êxito esperado (citado em Garcia-Huidobro; Torriti, Tugas, 2008). Para o peruano os sistemas construtivos não puderam ser adequadamente desenvolvidos, avaliados, nem industrializados, em função da reduzida dimensão de cada agrupamento. Além disso, os usuários não tiveram a devida assistência na ampliação de suas moradias. Enfim, finaliza com a afirmação de que o PREVI teria perdido seu valor inovador, tornando-se para ele um suporte caro para o morador e uma grande oportunidade perdida para os arquitetos da sua geração (Crousse, citado em Garcia-Huidobro; Torriti, Tugas, 2008).

Ao analisar os diferentes discursos, percebe-se que os olhares dos dois arquitetos continuam revelando significativas diferenças sobre a finalidade do PREVI: enquanto o estrangeiro avaliou como uma experiência a ser replicada em países em desenvolvimento, seguindo o modelo de circulação de ideias do centro para a periferia; o arquiteto peruano considerou o potencial de experimentar e replicar diferentes técnicas construtivas em qualquer território.

A diversidade característica da realidade latino-americana, atestada por Gorelik (2003), tem no PREVI um exemplar notável que condensa tanto o movimento de atuação estrangeira e de arquitetos locais retornando para seu país de origem, quanto os debates ideológicos sobre a região, apresentando possibilidades de soluções para um problema comum aos países vizinhos. De acordo com Land (2016), a contribuição mais importante do experimento foi a inserção e a materialização de respostas para algumas questões contemporâneas da disciplina de arquitetura, como a articulação de projeto, planejamento e tecnologia de construção para um ambiente residencial construído sustentável. Esse caráter experimental e internacional do concurso atraiu a mídia arquitetônica, de modo que em abril de 1970 o resultado da iniciativa recebeu um artigo na Architectural Design que o destacava enquanto um importante evento no campo das políticas e da arquitetura de moradias no segundo pós-guerra (Ballent, 2019) (Figura 3).

O artigo da AD abria a publicação com uma imagem condensadora, uma fotomontagem que sobrepunha uma reunião dos participantes do concurso internacional com a barriada El Agustina, retirada de uma obra de Turner. A imagem mostra bem o modo como o PREVI era pensado pela imprensa arquitetônica norte-americana, como uma operação de montagem cultural: sobreposição de centro e periferia, de instituições internacionais e governos locais, de saberes elevados e cultura popular. Nessa representação, o centro encarregava-se dos problemas da periferia, mas apesar das ideias de Turner, ao mesmo tempo a dominava. (Ballent, 2019, p. 296)


 

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Figura 3. Colagem utilizada no artigo da Architectural Design. Acervo digital da revista Architectural Design.

 


Uma colagem de atores e ideias na construção de uma cidade colagem que os habitantes completaram a nível construtivo e programático, dotando o bairro de uma maior complexidade funcional. Tratou-se de um desenho urbano aberto, a fundação de uma cidade inconclusa prevista para ser completada, como concluiu García-Huidobro, Torriti, Tugas (2010).

 

Considerações finais

A discussão empreendida neste trabalho possibilitou refletir acerca da realidade latino-americana na segunda metade do século XX, a partir do PP1 do PREVI, que gerou um campo de experimentação de ideias, mas não isento de tensões. Esse caráter da experimentação se manifestou sobretudo em função da escolha da ferramenta do concurso, possibilitando uma ampliação das soluções projetuais.

O concurso do PP1 do PREVI se particulariza, ao constituir-se tanto em uma competição de soluções quanto de arquitetos, na medida em que foi editado com dois formatos, diferente da etapa nacional, os participantes internacionais foram selecionados e chamados através de convite gerando uma tensão no perfil democrático da prática. Estes convites podem indicar a abordagem esperada pelos proponentes, que adotaram o território latino-americano como laboratório de experimentação de ideias discutidas no centro. No entanto, ainda que a proposta idealizada estivesse associada a uma tentativa de modernizar o planejamento urbano e as ações habitacionais no Peru, a iniciativa pode ser interpretada sobre a perspectiva do “divergir”, segundo o conceito de Waisman (2013), uma vez que a opção por um tecido urbano de baixa altura e alta densidade, composto por habitações unifamiliares com previsão de crescimento progressivo estava mais relacionado com o aspecto cultural e o modo de vida local, contrapondo-se aos edifícios multifamiliares e verticais para habitação social da realidade europeia –adotados em Lima em décadas anteriores– e a baixa densidade presente nos subúrbios norte-americanos.

As tensões também se manifestam nas diferentes propostas, expressas entre os grupos internacionais e locais. Enquanto os primeiros, mais articulados com os debates de revisão do movimento moderno, pareciam estar mais sensíveis às circunstâncias locais, muitas das propostas dos arquitetos peruanos ainda estavam sob o forte impacto dos ideais modernos. Nesse sentido, o PREVI revela uma sincronia de debates europeus no território latino-americano e um forte intercâmbio cultural e internacional entre todos os atores envolvidos no processo, desde os proponentes, até os participantes e o júri.

Independentemente dos formatos e da escala do concurso, tratou-se de um rico processo, em face ao particular encaminhamento do júri para a execução das 26 propostas. O resultado final construído contribuiu para uma abordagem mais ampla e heterogênea, com uma "vitrine" de soluções e ideias em circulação no contexto internacional, mas ao mesmo tempo atentas às demandas locais, conferindo ao exemplo um caráter ainda mais relevante. Apesar disso, ao observar a implantação dos projetos no conjunto executado, transparece a manutenção de uma dinâmica de centro e periferia, ainda que fisicamente as posições estejam invertidas.

Destaca-se que, após mais de 30 anos desta experiência, diferenças sintomáticas emergem nas memórias de dois arquitetos participantes: o olhar estrangeiro, mais distante, destaca a iniciativa como modelo a ser replicado em outros territórios em desenvolvimento, enquanto o olhar peruano ressalta que apesar das oportunidades de experimentação técnica, os desdobramentos, marcados por uma série de conflitos e problemas, comprometeram o potencial da iniciativa (García-Huidobro, Torriti, Tugas, 2010). O lapso temporal evidenciou, ainda, que a intenção da apropriação declarada no edital logrou grandes modificações nos projetos originais tornando-os irreconhecíveis e borrando as fronteiras entre as propostas locais e internacionais no contexto atual.

Esse conjunto de tensões fazem do PREVI um exemplar próprio da América Latina, em que os debates e as figuras internacionais se encontram com as demandas e ideias dos arquitetos latino-americanos, para abordar um problema emergente do século XX, contribuindo, assim, com a expansão do mapa intelectual como colocado por Gorelik (2003). O concurso como ferramenta de reunião para diferentes soluções, mas premiando apenas uma única proposta, descarta potenciais ideias que poderiam contribuir para a demanda do edital. Nesse contexto, a experiência do PREVI suscita várias reflexões sobre a possível flexibilidade para os concursos de habitação social, dada a diversidade de contextos, problemáticas e composições familiares envolvidas.

Apesar disso, as mudanças políticas que impactaram na condução do PREVI possivelmente contribuíram para sua pouca reverberação. Como afirmam Carranza e Lara (2015), ainda na década de 1970 percebe-se o desaparecimento dessa experiência nas publicações de arquitetura. É possível que as expansões dos projetos sem o devido acompanhamento técnico como previsto inicialmente também tenham eclipsado o PREVI ao longo do tempo. Por outro lado, há um renovado interesse expresso em uma série de publicações em um momento marcado por um giro à esquerda no governo de diversos países latino-americanos, com a retomada de políticas públicas de desenvolvimento e bem-estar social criando condições para a construção de um “novo” “mapa intelectual” preocupado em lançar olhares decoloniais sobre a América Latina.


 

Notas

1 Destacam-se também Luís Miró-Quesada, autor do livro Espacio en tempo, no qual reflete acerca dos conceitos iniciais do movimento moderno e sua relação com o cenário peruano, e Eduardo Neira Alva que estava interessado nas realidades das barriadas e nas possibilidades da assistência técnica.

2 Eduardo Neira se encontrou com Turner em um encontro internacional de arquitetos em 1950 em Veneza, quando o convidou para integrar o escritório de assistência técnica às urbanizações populares em Arequipa.

3 Diretor do programa de ajuda Peace Corps na época, e responsável pela expressão “barriada como solução”.

4 Após um terremoto ter atingido a região em 1970, instituiu-se também o PP4, que compartilhava pontos com o PP3, mas possuía um foco sobre construções sismo resistentes.

5 Waisman (2013) afirma que o território latino-americano é marcado pelas descontinuidades, sejam de mudanças de direção ou ruptura, constituindo um obstáculo para a exploração e aplicação das ideias na América Latina. Por este motivo, segundo Gorelik (2003), a defasagem entre projeto e realidade decorrente desse processo torna esse território um exemplo do embate entre representações e acontecimentos.

6 O júri foi composto por: Eduardo Barclay (Peru), José Antonio Coderch (Espanha), Halldor Gunnlogson (Dinamarca), Carl Koch (EUA), Peter Land (ONU), Ricardo Malachowski (Peru), Alfredo Perez (Peru), Manuel Valega (Peru), Ernest Weissman (EUA), Darío Gonzalez (Peru) e Alvaro Ortega.

7 A proposta transformada foi da equipe local (Takahashi, Vella, Bentin, Quinones) e a não executada foi a proposta alemã, de Herbert Ohl, que já havia causado controvérsia (Land, 2015).

8 No período em que foi convidado para participar do concurso, o arquiteto havia finalizado obras relevantes da sua carreira como o Orfanato Municipal de Amsterdã (1960), com um reconhecimento internacional cada vez maior.

9 Os relatos constam na seção Experiencias em Garcia-Huidobro, Torriti, Tugas (2008).


 

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Guilherme Amorim Cavalcanti

Possui graduação no Curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 2022. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal da Paraíba. Campus I Lot. Cidade Universitaria, PB, 58051-900, Brasil.

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https://orcid.org/0009-0000-1600-109X

 

Mariana Fialho Bonates

Possui graduação no Curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 2004, mestrado pelo Programa de Pósgraduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAUUFRN) em 2007, doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (MDU-UFPE) em 2016, com bolsa sanduíche da CAPES na School of Design da University of Pennsylvania entre 2013 e 2014. Atualmente é Professora Associada do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da mesma instituição. Laboratório de Estudos sobre Cidade, Cultura e Urbanidade. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal da Paraíba. Campus I Lot. Cidade Universitaria, PB, 58051-900, Brasil.

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https://orcid.org/0000-0001-9693-4614

 

Wylnna Carlos Lima Vidal

Possui graduação no Curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 1996, mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Engenharia Urbana pela Universidade Federal da Paraíba (PPGEU-UFPB) em 2004, doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Paraíba (PPGAU-UFPB) em 2019. Atualmente é Professora Adjunta do curso de Arquitetura e Urbanismo, Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória, LPPM/UFPB e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da mesma instituição. Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal da Paraíba. Campus I Lot. Cidade Universitaria, PB, 58051-900, Brasil.

 wylnna.vidal@academico.ufpb.br

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