REGISTROS, ISSN 2250-8112, Vol. 21 (2) julio-diciembre 2025: 84-102
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Arquitetura da desigualdade
As dependências das trabalhadoras domésticas nos apartamentos de Curitiba (1927–1972)
Architecture of Inequality: Domestic Workers’ Quarters in Curitiba’s Apartments (1927–1972)
Renata Munhoz da Rocha
Grupo de pesquisa Design e Cultura, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil.
Marinês Ribeiro dos Santos
Departamento Acadêmico de Desenho Industrial, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil.
Resumo
Este artigo investiga como valores de gênero, raça e classe se manifestavam nas normativas urbanas e arquitetônicas de Curitiba, reverberando nas plantas arquitetônicas de um conjunto de edifícios construídos durante o período de 1927 a 1972. O foco central da discussão está na configuração das chamadas “dependências de empregada”, quarto e banheiro destinados às trabalhadoras domésticas. Para isso, foram analisados o Código de Obras de 1919 e o Código de Obras de 1953, em conjunto com as plantas arquitetônicas de 89 apartamentos e anúncios publicitários veiculados no jornal Gazeta do Povo. Essa triangulação de dados permitiu compreender a articulação entre configuração física, marcos legais e discursos sociais em torno da habitação e do trabalho doméstico. Como resultado, a pesquisa evidencia como o espaço físico da habitação foi projetado para separar, vigiar e subalternizar as trabalhadoras domésticas. Argumenta-se que essas dependências funcionam como dispositivos espaciais que corporificam e atualizam dinâmicas herdadas do regime escravocrata, ressignificadas e legitimadas pelo urbanismo moderno e pelo mercado imobiliário.
Palavras-chave: apartamento, desigualdade, gênero, raça
Abstract
This article investigates how values of gender, race, and class were manifested in the urban and architectural regulations of Curitiba, reverberating in the architectural plans of a set of buildings constructed between 1927 and 1972. The central focus of the discussion is on the configuration of the so-called “maid’s quarters,” a bedroom and bathroom designated for domestic workers. To this end, the 1919 Building Code and the 1953 Building Code were analyzed alongside the architectural plans of 89 apartments and advertisements published in the newspaper Gazeta do Povo. This triangulation of data made it possible to understand the interplay between physical configuration, legal frameworks, and social discourses surrounding housing and domestic work. As a result, the research reveals how the physical space of housing was designed to separate, monitor, and subordinate domestic workers. It argues that these quarters function as spatial devices that embody and update dynamics inherited from the slaveholding regime, reinterpreted and legitimized by modern urbanism and the real estate market.
Keywords: apartment, inequality, gender, race
Introdução
Apesar de serem frequentemente apresentadas como instrumentos neutros, as legislações que regem as construções desempenham papel ativo na reprodução de desigualdades de gênero, raça e classe. Este artigo, desdobramento de uma pesquisa maior (Munhoz da Rocha, 2025), discute como tais valores se manifestavam nas normativas urbanas e arquitetônicas da cidade de Curitiba ao longo do século XX e, por consequência, na configuração espacial das plantas arquitetônicas dos edifícios construídos na época. O foco central da discussão são as chamadas “dependências de empregada”, quarto e banheiro destinados às trabalhadoras domésticas. Para tanto, foram analisados o Código de Obras de 1919 e o Código de Obras de 1953, por serem os códigos vigentes no período da construção dos prédios analisados, em conjunto com as plantas arquitetônicas de 89 apartamentos e anúncios publicitários veiculados no jornal Gazeta do Povo. Essa triangulação de dados permitiu compreender a articulação entre configuração física, marcos legais e discursos sociais em torno da habitação e do trabalho doméstico.
A seleção dos edifícios analisados baseou-se em três publicações de referência sobre a verticalização de Curitiba: a dissertação de mestrado Estudo e evolução do projeto de plantas de apartamentos de Curitiba I 1943 – 2004 (Vianna, 2011); o livro Morar nas Alturas – A verticalização de Curitiba entre 1930 e 1960 (Castro e Posse, 2017); e o livro Prédios de Curitiba (Macedo et al., 2017). Após a filtragem e a consulta a arquivos públicos, foram selecionados 21 edifícios, totalizando 89 apartamentos analisados. O recorte espacial concentra-se na região central de Curitiba, onde, em 1927, foi construído o primeiro edifício de apartamentos da cidade – marco inicial de um processo de verticalização que manteve o centro como principal foco até 1972. Esse ano foi adotado como limite temporal da pesquisa por representar o momento em que a verticalização passou a se expandir para outras áreas da cidade, deixando o centro de ser seu foco principal.
No final do século XVIII e início do século XIX, as "casas em apartamentos", como eram chamadas na época, representaram um novo modo de habitar que ganhava proeminência nos centros urbanos brasileiros. Essas habitações em altura simbolizavam o progresso e materializavam as promessas da modernidade e do capitalismo industrial, refletindo as mudanças econômicas e sociais impulsionadas pelos avanços científicos e tecnológicos da época (Castro e Posse, 2017).
Curitiba, assim como diversas cidades brasileiras, teve o processo de urbanização intensificado no começo do século XX. A exploração e o processamento da erva mate e da madeira fizeram com que o estado do Paraná tivesse um grande crescimento econômico e capital para ser investido em infraestrutura urbana. Houve então nesse período, juntamente com o aumento populacional, uma ampliação de obras de pavimentação das vias públicas, de redes hidrossanitárias, elétricas e telefônicas. Esses sistemas não foram implantados de maneira aleatória, mas sim controlados pelo Estado através de planejamento, implementação e regulamentação por meio de códigos sanitários, códigos de posturas e planos diretores (Posse e Castro, 2012).
Até 1953, as construções em Curitiba eram regidas pelo código de posturas de 1919, sob a Lei 527, que dividia o município em três zonas: Urbana, Suburbana e do Rocio, cada uma com regras específicas (Oliveira, 2016; Sêga, 1996). Um dos fatores determinantes sobre o que poderia ser construído ou não, era definido pela correlação da materialidade das edificações com o local da construção. Essa materialidade era expressa em número de pavimentos, método construtivo e sob a forma da construção. Na zona urbana, a área que corresponde ao centro da cidade, considerado "área nobre" devido à sua melhor infraestrutura. Nessa área, a regulamentação urbanística permitia apenas edificações em alvenaria. Além disso, as construções deviam ter no mínimo três pavimentos, enquanto a altura máxima não era limitada por lei, mas sim pelas capacidades técnicas e construtivas da época. Já na zona suburbana, mais afastada da infraestrutura central, eram permitidas construções térreas de madeira, desde que atendessem a certas exigências, como possuir lambrequins e serem pintadas com tinta a óleo. Na zona do Rocio, área que se estendia desde a zona suburbana até os limites do município, as edificações poderiam ser de madeira e a pintura poderia ser feita com cal (Curitiba, 1919).
Uma vez que construir em alvenaria e pintar com tinta a óleo era mais caro do que usar madeira e cal, essa legislação fazia com que, de forma indireta, os materiais agissem como um limitador de classe social, definindo quem poderia residir em qual área. Desta forma, além da regulação do mercado imobiliário com relação ao preço das terras, o estado, por meio da legislação, regulava o acesso às áreas centrais mesmo que indiretamente. Essas áreas centrais, mais desenvolvidas em termos de infraestrutura, eram desse modo mais restritas às pessoas com maior poder aquisitivo, que naquela época eram predominantemente brancas. Enquanto isso, pessoas das classes trabalhadoras e entre elas as racializadas eram empurradas para as periferias, áreas com menos infraestrutura. Esse exemplo ilustra o argumento da arquiteta e pesquisadora Joice Berth (2023) sobre desigualdades no planejamento urbano brasileiro, que desde sua origem tem sido caracterizado pela exclusão sistemática de grupos socialmente marginalizados, sobretudo pessoas de baixa renda e não brancas.
No século XX, a reformulação urbana de Curitiba foi um projeto deliberado dos administradores municipais, fundamentado em concepções eugenistas e higienistas predominantes na época. As estratégias de urbanização buscavam eliminar vestígios do passado colonial e escravista, implementando mudanças que afetavam tanto o ambiente construído quanto a população. Esse processo ajudou a consolidar a falsa percepção, que é mantida até os dias atuais, de que Curitiba não possui uma presença negra significativa. Entretanto, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021 contradizem essa ideia. Segundo o senso, Curitiba é a cidade com a maior população negra do Sul do Brasil, sendo que 24 % de seus habitantes se autodeclaram negros (Rodrigues, 2023).
A narrativa de apagamento da história negra na cidade é refutada por diversos fatos históricos. Um exemplo é que a segunda igreja construída na cidade foi a Igreja do Rosário dos Pretos, que em 1931 foi demolida para dar lugar à atual Igreja do Rosário. Outro exemplo é a criação da Sociedade 13 de Maio, que foi fundada após a abolição da escravidão em 1888 e cujo nome remete à assinatura da Lei Aurea. Na instituição, além de eventos para promover a integração entre os sócios, eram oferecidas aulas de gramática e aritmética, sendo a educação noturna uma das primeiras iniciativas voltadas à inclusão cultural e à possibilidade de ascensão social da população negra recém-liberta. Embora a população negra e de baixa renda tenha sido progressivamente empurrada para áreas com menos infraestrutura, a sede da Sociedade 13 de Maio estava situada no centro da cidade. Um dos motivos para essa localização pode ter sido a proximidade com a Rua Saldanha Marinho, conhecida como um espaço de concentração de trabalhadores negros na região central (Santos, et al., 2019).
A exclusão social e racial no planejamento urbano impactava diretamente as condições de moradia, pois restringia o acesso de diferentes classes sociais às novas tecnologias que vinham sendo implementadas. Inovações como as redes hidrossanitária e elétrica transformaram não apenas a estrutura das casas, mas também o modo de habitar das populações urbanas (De Castro e Posse, 2012). Durante o período colonial, a organização doméstica dependia essencialmente do trabalho de pessoas negras escravizadas, que desempenhavam funções como anunciar visitas, abanar os senhores, carregar dejetos em barris equilibrados na cabeça até os rios, esquentar água no fogo, entre outras tarefas. Na habitação moderna, essas funções foram progressivamente substituídas pelas novas infraestruturas tecnológicas, como os sistemas hidrossanitário e elétrico, refletindo uma reorganização das dinâmicas dentro do espaço doméstico (Veríssimo e Bittar, 1999).
As “Casas de apartamento”
Com a introdução das novas infraestruturas tecnológicas, foi se configurando em Curitiba um novo modo de habitar, alinhado aos movimentos globais de urbanização e inspirado, sobretudo, nos modelos habitacionais das cidades norte-americanas: as chamadas "casas de apartamento". Esse formato, caracterizado por múltiplas unidades habitacionais empilhadas em um único edifício, teve como marco inicial na cidade de Curitiba o icônico Palácio Avenida, apresentado na Figura 1 (Vianna, 2011). Essa construção não apenas introduziu a tipologia de apartamentos na cidade, mas também se tornou um marco do morar moderno, simbolizando o começo de um novo padrão de habitação urbana. Equipado com luz elétrica e água encanada, ele tinha uma configuração arquitetônica inovadora para a época com seus quatro pavimentos de uso misto. A base abrigava um teatro e também era destinada ao comércio, nos andares superiores, distribuíam-se nove apartamentos por pavimento, acessíveis tanto por uma escada quanto por um elevador. Essa combinação de elementos consolidou o edifício como um exemplar pioneiro da verticalização e da modernização da moradia.
Figura 1. Elevação do Palácio Avenida. Prefeitura de Curitiba, 1926.
Figura 2. Comparação da planta da casa com a planta do apartamento da mesma época. Elaborada por Renata Munhoz da Rocha.
Embora tenha sido concebida como uma nova forma de habitar, a configuração espacial dos primeiros apartamentos de Curitiba no Palácio Avenida reproduzia, em grande medida, a lógica das casas do mesmo período. Na Figura 2, é possível observar o projeto da Casa do Sr. João Ghignone, uma residência de 1927 localizada em Curitiba, que ao ser comparada com a planta de um dos apartamentos do Palácio Avenida evidencia a continuidade da mesma lógica na organização dos espaços. Devido à antiguidade das plantas, a qualidade das imagens é parcialmente comprometida, mas as legendas dos ambientes possibilitam verificar sua correspondência. Destaca-se a notável similaridade na relação entre os cômodos e na adaptação dos fluxos internos à nova tipologia habitacional. Apesar das diferenças entre as formas construtivas, um edifício e outra casa, a lógica espacial e funcional dos ambientes foi mantida. Essa continuidade reflete uma transposição de hábitos e dinâmicas residenciais pré-existentes para os apartamentos, permitindo que as formas de vida doméstica e as hierarquias sociais continuassem a se manifestar na nova configuração habitacional.
A circulação, que na casa era externa dava acesso à sala de visitas e, mais ao fundo do terreno, à cozinha, na tipologia de apartamento, é incorporada no interior da habitação. Essa mudança permite que, apesar da entrada ao apartamento não ser feita pela rua, a sala de visitas permaneça voltada para ela, como ocorria na casa, reforçando seu caráter de cômodo público dentro da hierarquia de privacidade da habitação.
No apartamento, o quarto principal dos proprietários permanece anexo à sala de visitas, uma posição que destacava o status e o grau hierárquico dos moradores. Outro ponto observado, não no apartamento da imagem acima, mas nos apartamentos localizados nas esquinas do Palácio Avenida, é a presença de quartos com mais de um acesso, conectados aos cômodos adjacentes. Segundo Veríssimo e Bittar (1999), essa configuração era comum em casas do período colonial, sendo utilizada pelos pais como forma de controlar a sexualidade da prole, sobretudo das filhas.
O acesso à cozinha, que na casa poderia ser feito também pelos fundos, no apartamento é acessado pelo mesmo corredor principal que leva à sala de visitas. Sendo assim, apenas o fechar de uma porta delimita o contato social entre quem está na cozinha e quem vai para a sala de visitas, deixando a convivência de quem está trabalhando na cozinha e quem está visitando o apartamento mais próximos fisicamente, o que não acontecia na casa. Na configuração arquitetônica desses apartamentos as disparidades de classe e gênero e raça ficam mais próximas fisicamente. Essa configuração não é usual nos apartamentos subsequentes e sofre alterações para que esses fluxos sejam separados.
A posição da sala de jantar, entre a cozinha e a sala de visitas, também não se altera. Assim, a circulação se adapta ao novo formato residencial sem que a noção simbólica da relação entre os ambientes, sala de visitas, quarto, sala de jantar e cozinha seja alterada.
Na casa do senhor João Ghignone, o "quarto de empregada" aparece claramente anexo à cozinha. Já na planta do Palácio Avenida, a designação do ambiente contíguo à cozinha é ilegível, o que levanta a possibilidade de que este espaço tenha sido destinado ao "quarto de empregada". Outra hipótese é que as acomodações das trabalhadoras domésticas estivessem situadas em uma área diferente do edifício, fora do interior da unidade habitacional.
No Brasil, embora os alojamentos das trabalhadoras domésticas sejam, em sua maioria, integrados ao interior das unidades habitacionais, entre 1910 e 1940 também existiam acomodações localizadas no topo dos edifícios. Essa prática provavelmente foi influenciada pelas construções francesas do período Haussmanniano. Na capital francesa, os edifícios geralmente tinham seis pavimentos e, frequentemente, não contavam com elevadores ou, quando presentes, estes não alcançavam o último andar. O difícil acesso a esse pavimento tornava-o a parte menos valorizada do edifício, reforçando as desigualdades sociais na organização espacial (Rial e Grossi, 2000). Consequentemente, os vários quartos com um banheiro compartilhado no fim do corredor que eram destinados às trabalhadoras domésticas ficavam alocados nesse espaço, conhecido como Chambre de Bonne, termo francês em que chambre significa "quarto", e Bonne faz referência à Bonne à Tout Faire, que pode ser traduzido como "criada para todo serviço".
Essa configuração, que posicionava as trabalhadoras domésticas em áreas mais afastadas da família empregadora, proporcionava maior privacidade e uma certa autonomia às trabalhadoras domésticas. Contudo, de acordo com Thompson (2013), essa organização espacial foi motivada por uma ansiedade moral e social característica da época. Com o fim da escravização e a emancipação das trabalhadoras na França, elas passaram a ser vistas como uma ameaça potencial à integridade moral e social dessas famílias. Por isso, eram mantidas no local mais distante possível no prédio.
No Brasil, diferentemente do modelo francês, os edifícios muitas vezes contavam com elevadores que alcançavam os últimos pavimentos do edifício, porém a proximidade dessas áreas com o telhado – tradicionalmente associado às funções de serviço devido à presença da sala de máquinas e da caixa d’água – perpetuava uma ligação simbólica com a parte menos prestigiada da construção. Além disso, a regulamentação tardia da profissão de arquitetura no Brasil, ocorrida apenas em 1933, favoreceu a influência europeia nas soluções projetuais. Muitos profissionais atuantes no país eram estrangeiros ou formados em escolas europeias, trazendo consigo práticas construtivas e culturais que refletiam as hierarquias sociais e espaciais presentes em seus contextos de origem (Cabral e Paraíso, 2018).
Até 1940, além das soluções já mencionadas, no topo do edifício e dentro da unidade habitacional, outras duas estratégias eram frequentemente utilizadas no Brasil para acomodar trabalhadoras domésticas. A primeira consistia em alocá-las em uma construção anexa ao edifício principal, localizada nos fundos do terreno. Essa estrutura tinha vários quartos com a disposição que se assemelhava aos cortiços, com múltiplos quartos compartilhando um banheiro no final do corredor. Tal configuração, que remetia às edículas das residências de famílias abastadas, e na compra ou locação de cada apartamento era incluso um cômodo de serviço situado neste anexo (Nunes, 2014).
A segunda alternativa era acomodá-las no pavimento tipo dos apartamentos, porém fora da unidade habitacional. Conforme aponta a arquiteta Jéssica Lima (2019), essa solução pode ser considerada precursora da inclusão definitiva das dependências domésticas no interior da unidade residencial.
Essas outras soluções para a localização das acomodações das trabalhadoras domésticas podem ser observadas em edifícios no Rio de Janeiro e em São Paulo (Lima, 2019). Em Curitiba, entretanto, tais configurações não foram identificadas nos edifícios analisados, com exceção da tipologia em que a dependência está localizada fora da unidade habitacional, mas no mesmo pavimento tipo. Essa exceção foi encontrada no Edifício São Lourenço, construído em 1947.
Como mencionado anteriormente, o Palácio Avenida construído em 1927 foi o prelúdio da verticalização sendo o primeiro edifício de apartamentos da capital. Porém, a verticalização da cidade se acentuou realmente a partir de 1940. O novo ciclo econômico do café e o projeto de urbanização nacional de Getúlio Vargas trouxeram novos investimentos para o desenvolvimento da capital. Na época, o urbanismo das cidades brasileiras era fortemente influenciado pelo modelo francês, marcado por discursos higienistas e eugenistas aplicados à organização e formação dos espaços urbanos (Berth, 2023). Curitiba, buscando alinhar-se ao desenvolvimento de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, contratou em 1940 a equipe do urbanista francês Alfred Agache, responsável pela elaboração do Plano Diretor do Rio de Janeiro, para desenvolver o seu primeiro Plano Diretor (Vianna, 2011).
O projeto consistia em dividir a cidade em zonas funcionais: centro comercial, centro administrativo, cidade universitária, centro militar, centro industrial e um centro de abastecimento. Para ligar esses setores as vias teriam um formato concêntrico a partir do centro já estabelecido (Santos, 2015). A cidade também seria dividida em quatro avenidas perimetrais, em quatro radiais principais e dez radiais secundárias (Martins, 2019).
Com o fim do regime de Vargas em 1945, muitas das propostas urbanísticas para Curitiba não chegaram a se concretizar e o plano diretor da época foi implementado apenas de forma parcial (Martins, 2015). Assim, até 1953, a cidade continuou regida pelo Código de Obras de 1919, que já previa a verticalização do centro.
A partir da década de 40, como previa a legislação, os apartamentos em altura começaram a aparecer em maior número na zona urbana, o centro da cidade. Os Edifícios Nossa Senhora da Luz, José Loureiro e Marumby, com seus respectivos 7, 9 e 12 andares, eram considerados “arranha-céus” e exibidos com orgulho e exaltação nos jornais e cartões postais da época como símbolo do progresso e do desenvolvimento da Curitiba moderna (De Castro e Posse, 2017).
Figura 3 Cartão postal de Curitiba com fotografia do edifício Marumby, 1950. Foto de Alberto Lopes Leiloeiro.
Porém, apesar da exaltação da imagem do edifício em altura como um ornamento à cidade, demonstrando o poder da construção civil, da engenharia e, segundo Joice Berth, (2023) também do androcentrismo, devido ao seu formato fálico, o viver em apartamentos era considerado, por uma parte da sociedade, um risco moral. Esse tipo de residência era frequentemente associada aos cortiços, locais de moradia, convivência e sociabilidade de pessoas das classes trabalhadoras, muitas delas negras, carregando um estigma de promiscuidade, desordem e insalubridade. Essa percepção negativa reforçava preconceitos raciais e de classe, alimentando a ideia de que o apartamento não era um ambiente adequado para famílias tradicionais e respeitáveis. Além disso, a ausência de jardins privativos e a proximidade física entre as unidades habitacionais eram vistas como uma ameaça à intimidade e à moralidade familiar (Belisário, 2023).
Buscando afastar-se desse estigma, além do organograma do apartamento ser semelhante ao da casa, como visto anteriormente, era primordial que as casas de apartamento possuíssem instalações sanitárias próprias no interior de cada unidade habitacional. Era necessário enfatizar que o apartamento representava um lar familiar respeitável, uma moradia completa, que contava com copa, cozinha, banheiro, salas de jantar e estar, além de acomodações destinadas às trabalhadoras domésticas, elemento considerado essencial na época (Lemos, 1978).
A presença das acomodações das trabalhadoras domésticas dentro da unidade habitacional, segundo Carlos Lemos (1978), é uma das heranças do sistema escravocrata no Brasil, perpetuando desigualdades baseadas em raça, gênero e classe. Essas condições revelam como a estrutura social pós-abolição preservou a lógica de poder de exploração e subordinação, mantendo as trabalhadoras domésticas em uma posição marginalizada, tanto física quanto simbolicamente, dentro do espaço doméstico (Saleiro, 2001). Os traços de desumanização herdados desse período continuaram a se manifestar de forma evidente nas práticas sociais da época. Outro exemplo disso, era a maneira como as trabalhadoras domésticas eram descritas em anúncios de jornal, onde frequentemente eram tratadas como mercadorias, reforçando uma lógica de objetificação, subordinação e servidão que persistiu mesmo após o fim do regime escravocrata.
Embora a presença da “empregada doméstica” e, consequentemente, das acomodações destinadas a elas fossem consideradas essenciais nas habitações, as legislações de 1919 e de 1953 não apresentavam regulamentações específicas para esses espaços, o que configura um apagamento das trabalhadoras e dos espaços que elas ocupavam nas casas.
Figura 4. Plantas dos edifícios: Angela Perrone, 1950; Governador, 1967, e Barão do Serro Azul 1965. Prefeitura de Curitiba. Grifos das autoras.
Onde a moradia e o trabalho se sobrepõem
Se na cidade a lógica espacial evidencia uma segregação socioeconômica, em que as periferias são destinadas às classes de menor poder aquisitivo e o centro é predominantemente ocupado por pessoas abastadas (Santos, et al., 2019), podemos dizer que essa dinâmica também se reproduz no ambiente doméstico. Geralmente localizados nos fundos ou no centro do terreno, as na época chamadas de "dependências de empregada" ocupam as áreas menos valorizadas do apartamento tendo acesso limitado à iluminação e ventilação natural.
Na Figura 4 temos três exemplos diferentes de implantação e podemos ver os quartos e banheiros desses espaços destacados em amarelo. No Edifício de esquina Ângela Perrone as dependências aparecem voltadas para o centro do terreno. No Edifício Governador, que apresenta uma planta circular, as dependências das trabalhadoras ficam no centro do edifício sem contato com a rua. Já no Edifício Barão do Serro Azul, elas estão localizadas nos fundos do terreno. Essa disposição espacial reflete a lógica de exclusão apontada por Joice Berth (2023), segundo a qual a configuração do meio urbano opera por meio de uma simbologia material que consolida uma mensagem oculta: há um espaço reservado às pessoas abastadas e outro destinado às de menor poder social. Nos apartamentos analisados, essa lógica torna-se evidente pela localização sistematicamente desfavorável das áreas destinadas às trabalhadoras domésticas, que ocupam sempre as piores condições habitacionais.
Em 60,3 % dos casos (41 apartamentos), a entrada de serviço conduzia a um terraço – geralmente utilizado como lavanderia – que dava acesso direto ao quarto da trabalhadora doméstica, localizado no setor de serviço. Entre as configurações menos frequentes, observam-se aquelas em que a porta de serviço se abria diretamente para a cozinha, exigindo que, para chegar ao dormitório, fosse necessário atravessar a cozinha e passar por um terraço; e aquelas em que o quarto se conectava diretamente à cozinha, sem a presença do terraço.
Os quartos “depósito”
O que mais chama atenção são as dimensões reduzidas dos quartos das trabalhadoras. Na Figura 5 são destacadas as configurações de algumas dependências destinadas às trabalhadoras domésticas. Para ilustrar as variações espaciais e entender suas dimensões, a Figura 5 apresenta um possível layout de cada quarto, com cama de solteiro e armário. Do lado esquerdo e acima está o cômodo do Edifício Nossa Senhora da Luz, construído pela Surigi&Colle em 1940, com o projeto arquitetônico atribuído a Paulo Romeu da Costa (Macedo, 2020). Este edifício é o primeiro da pesquisa a apresentar esse tipo de cômodo. Ao lado está o quarto do Edifício Guadalajara, projetado por José Maria Gandolfi e Luiz Forte Netto, por ser o último edifício construído no arco temporal em estudo. Sua implementação ocorreu em 1970. Abaixo, à esquerda, temos o quarto do Edifício Marumby, implementado em 1944 pela construtora Gutierrez, Paula e Munhoz, cujo projeto também é atribuído a Paulo Romeu da Costa. Esse exemplo foi selecionado por apresentar o menor tamanho. Por fim, abaixo e à direita está o quarto do Edifício José Carvalho de Oliveira, com projeto de Eduardo Chaves, de 1940. Ele é destacado por ser o maior quarto entre os analisados.
Nesses quatro cômodos, com exceção do quarto do Edifício José Carvalho de Oliveira existe um único arranjo possível para o mobiliário devido às limitações de espaço do ambiente. As dimensões reduzidas dos aposentos são tão restritivas que, no caso do Edifício Marumby e do Edifício Guadalajara, a única possibilidade para incluir um armário destinado à trabalhadora doméstica seria posicioná-lo na parte superior da cama.
Figura 5. Plantas dos quartos com simulação de layout. Elaborado por Renata Munhoz da Rocha.
A legislação de 1919, composta por 65 páginas, estabelecia de forma simples as exigências que cada cômodo deveria atender, mas não mencionava especificamente as dependências das trabalhadoras domésticas (Curitiba, 1919). Já a legislação de 1953, mais extensa e detalhada, com 346 páginas, introduziu novas condições para cada ambiente. Contudo, conforme será exposto a seguir, o espaço destinado às trabalhadoras domésticas permaneceu sem regulação especifica. Além disso, muitos dos novos critérios, embora previstos na lei, eram frequentemente desconsiderados nas áreas destinadas às trabalhadoras, revelando a persistência de práticas que reforçavam a hierarquia espacial e social no ambiente doméstico.
Com a legislação a nova legislação de 1953 os cômodos foram classificados em três categorias: compartimentos de permanência prolongada, como dormitórios, refeitórios, salas de estar, de visitas, de jogos e de costura; compartimentos de utilização transitória, incluindo vestíbulos, salas de entrada, salas de espera, corredores, caixas de escada, rouparias, cozinhas, copas, despensas, banheiros e depósitos; e compartimentos de utilização especial, como adegas e armários embutidos. Dentro dessa classificação alguns cômodos têm regulamentações diferentes entre si apesar de pertencerem ao mesmo grupo (Curitiba, 1953).
Então, segundo a nova legislação, os quartos eram enquadrados como cômodos de permanência prolongada, o que os conferia certos critérios como janelas para o exterior com ⅙ da área do piso e área mínima de cinco metros quadrados para dormitórios em apartamentos desde que seja possível a inscrição de um círculo no chão de um metro de raio. Apesar disso, como descrito anteriormente, as análises desses aposentos revelam que os requisitos mínimos frequentemente não eram cumpridos.
Para a aprovação na prefeitura, os arquitetos e engenheiros burlavam a legislação indicando os quartos destinados às trabalhadoras domésticas como “depósito de malas”, “depósito de lenha” ou “rouparia”. Essa estratégia permitia contornar os requisitos mínimos de cinco metros quadrados de área e a necessidade de janelas para o exterior para dormitórios, já que esses outros ambientes não precisavam atender a tais exigências. Essa estratégia de driblar a legislação foi identificada na maioria dos casos analisados. Dos 68 aposentos avaliados, 82,4 % (56 apartamentos) foram aprovados com nomenclaturas que ocultavam sua função como dependência da trabalhadora doméstica, enquanto apenas 17,6 % (12 apartamentos) receberam a designação correta. No entanto, em todos os casos, a finalidade desses espaços era atender à moradia de trabalhadoras domésticas, evidenciando uma prática sistemática de dissimulação que perpetua desigualdades sociais e desrespeita normas legais. Além disso resultar em dormitórios menores do que 5 m², também foi identificado que em 33,8 % (23 apartamentos) dos casos os aposentos não tinham janela, e nos casos onde apareciam janelas, elas eram apenas em 4,4 % (2 apartamentos) direcionadas para a rua, sendo 54,4 % (24 apartamentos) dos casos voltadas para terraços, lavanderias ou poços de ventilação e 42,2 % (19 apartamentos) voltados para os fundos ou para o meio do terreno.
Gráfico 1. Nomenclatura dos quartos.
Elaborados por Renata Munhoz da Rocha.
Gráfico 2. Existência de Janelas.
Elaborados por Renata Munhoz da Rocha.
Gráfico 3. Para onde as janelas estão voltadas.
Elaborados por Renata Munhoz da Rocha.
Apesar da estratégia de aprovação na prefeitura com outros nomes, essas áreas eram caracterizadas em anúncios publicitários, agora planejados para venda das unidades habitacionais, como “quarto de empregada”. Nas Figuras 6 e 7 temos a planta de aprovação na prefeitura do Edifício Eldorado, onde o ambiente é colocado com a designação de “malas” na aprovação e a planta divulgada no anúncio tem a designação de quarto. Apesar dessa designação não mencionar a trabalhadora doméstica, no texto que acompanha o anúncio é descrito a presença de três dormitórios e a presença de instalações para empregados.
Figura 6. Planta do edifício Eldorado, aprovada na prefeitura de Curitiba em 30 de outubro de 1957. Prefeitura de Curitiba. Destaque das autoras.
Figura 7. Planta divulgada em anúncio publicitário no jornal Gazeta do Povo em novembro de 1959. Destaque das autoras.
A planta do Edifício Esmeralda segue a mesma lógica, sendo que, na versão submetida para aprovação na prefeitura, o espaço é denominado como "depósito de malas" (Figura 8). No entanto, na planta destinada à divulgação para venda, o mesmo ambiente é identificado como "quarto de empregada".
Assim como a casa pode ser tida como uma prótese de gênero que constrói identidades femininas em simbiose com ela (Carvalho, 2022) pode-se dizer que a identidade social da trabalhadora doméstica é produzida em simbiose com os seus aposentos, popularmente chamados de “quartinho de empregada”, devido à sua metragem reduzida. Essa realidade é abordada, entre outros exemplos, no filme Que Horas Ela Volta? (2015), dirigido por Anna Muylaert. A obra narra a vida de Val, uma trabalhadora doméstica que trabalha para uma família rica em São Paulo e vive em um pequeno quarto no fundo da residência. No desenrolar da história, a chegada da filha de Val, Jéssica, para fazer vestibular de arquitetura na cidade, traz à tona questionamentos sobre a divisão espacial e social da casa. Ao observar a planta da habitação, Jéssica destaca as enormes diferenças entre os espaços destinados aos moradores e ao quarto de sua mãe. Enquanto a casa é ampla, luxuosa e climatizada, o quarto da empregada é pequeno, localizado em uma área menos privilegiada e exposto ao calor.
Figura 8. Planta de aprovação na prefeitura de Curitiba e planta divulgada em anúncio publicitário do edifício Esmeralda. Correio do Paraná, 18 de dezembro de 1960, apud Livro Morar nas Alturas, p. 227. Destaques das autoras.
Assim como fez Jessica no filme, nessa pesquisa foi realizada a comparação entre o quarto destinado às trabalhadoras domésticas e o menor quarto habitado pelos moradores. A discrepância entre os dois espaços é evidente: os quartos destinados às trabalhadoras apresentavam áreas até quatro vezes menores do que os dos moradores. Essa diferença destaca a segregação espacial e a hierarquia incorporada na organização dos apartamentos, revelando como eram burladas as normas mínimas, desconsiderando as condições de quem vivia e trabalhava nesses espaços. No gráfico abaixo, são apresentadas as porcentagens relativas aos tamanhos dos quartos analisados na pesquisa.
Gráfico 4. Tamanho dos quartos das trabalhadoras em relação ao menor quarto da habitação.
Elaborado por Renata Munhoz da Rocha.
Para os demais moradores da habitação, o quarto é apenas mais um dos cômodos da casa, integrado a um conjunto de espaços que oferecem múltiplas funções, como estar, descanso e lazer. Eles possuem liberdade para transitar por toda a residência, utilizando os diversos ambientes de acordo com suas necessidades e momentos de vida. Em contraste, as trabalhadoras domésticas enfrentam restrições que limitam tanto seu uso dos espaços quanto sua circulação dentro da casa. Ainda que tenham acesso a todos os ambientes para desempenhar suas funções, esse acesso é condicionado ao trabalho e restrito a horários específicos (Teixeira, 2021). A residência, portanto, enquanto local de trabalho, não se configura como um território de livre circulação para elas. Suas passagens pelos quartos, banheiros, cozinha e corredores são guiadas pelas tarefas a cumprir (Gorban, 2017). Essa dinâmica reforça práticas demarcatórias impostas pelas pessoas empregadoras, que distinguem o uso dos espaços pelas trabalhadoras daquele usufruído pelos demais ocupantes da casa, negando-lhes uma real apropriação do ambiente.
Nesse contexto, o quarto destinado às trabalhadoras domésticas adquire um significado ambíguo, é um local para descanso dentro do ambiente de trabalho. É o único espaço em que elas podem encontrar alguma privacidade, construir uma individualidade e, ainda que temporariamente, "não estar trabalhando". Apesar de ser o único ambiente que lhes pertence, ainda que de forma precária dentro da habitação, sua configuração arquitetônica revela a marginalização dessas profissionais. Enquanto os outros quartos da residência oferecem maior flexibilidade de design e conforto, os quartos de trabalhadoras domésticas são projetados com dimensões reduzidas e localizações menos privilegiadas. Tal diferença espacial não apenas reflete as dinâmicas de poder que atravessam a relação entre empregadores e empregados, mas também as reforça ativamente. A restrição de tamanho, mas também de iluminação e ventilação, desses cômodos evidencia que esses espaços, fundamentais para garantir uma mínima autonomia às trabalhadoras, são tratados mais como um apêndice funcional da casa do que como um ambiente de moradia digno. Assim, a arquitetura desses quartos, ao mesmo tempo em que materializa a divisão hierárquica herdada de períodos anteriores, opera como agente na perpetuação dessas relações desiguais.
Considerações finais
A pesquisa aqui apresentada analisa as plantas arquitetônicas originais dos edifícios de Curitiba como artefatos culturais que, simultaneamente, refletem e moldam os valores e dinâmicas sociais. Como discutido anteriormente, diversas forças de poder influenciam a configuração desses edifícios. Neste estudo, foram destacadas: a prefeitura, como representação do poder estatal; o mercado imobiliário, por meio dos anúncios que promovem os empreendimentos; e as plantas arquitetônicas, enquanto produto do trabalho dos arquitetos responsáveis por seus projetos, cujo papel também incorpora uma força de poder neste contexto. Apesar das inúmeras barreiras inerentes à prática da arquitetura, os profissionais responsáveis pelos projetos deixam sua marca e exercem impacto duradouro sobre o espaço construído.
Os arquitetos e engenheiros, ao projetarem os espaços destinados às dependências das trabalhadoras domésticas nos apartamentos analisados, acabaram por reproduzir um modelo enraizado na sociedade que reforça a desumanização dessas profissionais. Os quartos apresentam dimensões extremamente reduzidas, carecem de circulação adequada e, com frequência, não oferecem as condições mínimas de ventilação e iluminação necessárias para um ambiente digno.
Sabe-se que a atuação de profissionais da arquitetura – especialmente no contexto de habitações em série, como é o caso dos apartamentos – é frequentemente limitada por várias questões, sendo muitas delas impostas por agentes do mercado privado, como construtoras e imobiliárias, e pela aceitação das plantas pelo público. Além disso, os apartamentos, concebidos como habitações em série, são projetados e construídos sem o conhecimento prévio do cliente final, buscando atender a um programa de necessidades padronizado e culturalmente aceito que visa a posterior comercialização das unidades. Essas condições não apenas reduzem a autonomia na criação das soluções, mas também dificultam a introdução de inovações projetuais. Porém, é essencial que haja uma análise crítica dos projetos executados a fim de que não sejam reproduzidos de forma naturalizada padrões construtivos que reflitam e construam desigualdades de gênero, raça e classe. E que alguma das forças de poder, seja ela o estado, a sociedade civil, ou quem projeta as construções possam ser agentes da mudança da realidade social.
Foi identificado e analisado na pesquisa a força de poder estatal, manifestada pelas leis municipais que regulam o ambiente construído, e do mercado imobiliário, perceptíveis nos padrões evidenciados nos anúncios de venda. Além disso, discutiu-se a dinâmica social que, em grande parte, absorve esses padrões sem questioná-los.
As dependências das trabalhadoras domésticas, localizadas longe das fachadas principais, com pouca ou nenhuma luz natural e ventilação inadequada, e com metragem reduzida, exemplificam como a arquitetura pode materializar e construir preconceitos de gênero, classe e raça, perpetuando uma visão desumanizadora contribuindo para a manutenção de uma hierarquia social rígida. É importante ressaltar que as condições precárias desses espaços não eram resultado de uma falta de recursos, mas sim de escolhas arquitetônicas deliberadas que refletiam, construíam e perpetuavam dinâmicas de poder históricas.
Ao conjugar os dados arquitetônicos com perspectivas teóricas, a pesquisa revela como decisões projetuais aparentemente técnicas estão imbricadas de valores dos contextos sociopolíticos mais amplos.
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Renata Munhoz da Rocha
Mestre em Sociedade e tecnologia pela Universidade Federal do Paraná e arquiteta pela mesma instituiçao. Grupo de pesquisa Design e Cultura, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Av. Sete de Setembro, 3165 – Rebouças. 80230-901 Curitiba PR Brasil.
renatamunhozdarocha@gmail.com
https://orcid.org/0009-0004-0034-3203
Marinês Ribeiro dos Santos
Possui graduação em Desenho Industrial pela Universidade Federal do Paraná, Mestrado em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná e Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Departamento Acadêmico de Desenho Industrial e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Av. Sete de Setembro, 3165 – Rebouças. 80230-901 Curitiba PR Brasil.
ribeirosantos.marines@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9925-9949
Recebido 14 de agosto de 2025 Aceito 25 de novembro de 2025 Publicado 1 de dezembro de 2025
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