REGISTROS, ISSN 2250-8112, Vol. 21 (2) julio-diciembre 2025: 167-187
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Coqueiros de beira mar
Arranha-céus e morar nordestino na verticalização da cidade de João Pessoa (1950-1970)
Seaside Coconut Trees: Skyscrapers and Northeastern Modes of Dwelling in the Verticalization of the City of João Pessoa (1950-1970)
Francisco Sales Trajano Filho
Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, Brasil.
Resumo
O artigo analisa o processo de verticalização da cidade de João Pessoa entre as décadas de 1950 e 1970, explorando as tensões entre modernidade e tradição, progresso e identidade local, a partir dos discursos mobilizados na composição de distintos imaginários. De um lado, a defesa da modernidade consubstanciada na figura dos arranha-céus, de outro, a defesa de modos de vida e ocupação do espaço ancorados na ideia de um morar nordestino, expressão de maior autenticidade cultural e regionalmente enraizada. Delimitando um período-chave de expansão da área urbana da capital paraibana, nessas décadas a verticalização e a casa unifamiliar personificaram duas formas de pensar o crescimento urbano, dois modelos de ocupação territorial, cada um deles apontando para modos de morar divergentes, em sintonia ou desacordo com as sugestões do clima e da cultura locais. Refletindo tensões que permearam os debates acerca da verticalização no Brasil desde os anos 1920, esse episódio da história urbana da capital paraibana particulariza-se ao submeter a verticalização e seu imaginário a condicionantes culturais que ampliavam o discurso crítico em torno dos arranha-céus e sua pertinência local, vistos para além de seus aspectos econômicos, higiênicos ou morais.
Palavras-chave: verticalização, João Pessoa, Arranha-céu, morar nordestino, história urbana
Abstract
This article examines the process of verticalization in the city of João Pessoa between the 1950s and 1970s, investigating the tensions between modernity and tradition, progress and local identity, through the discourses mobilized in the construction of distinct imaginaries. On the one hand, modernity was championed and materialized in the figure of the skyscraper; on the other, the defense of ways of life and spatial occupation grounded in the notion of a Northeastern mode of dwelling, regarded as a more authentic and regionally embedded cultural expression. By delineating a key period of urban expansion in the capital of Paraíba, these decades witnessed verticalization and the single-family house embodying two divergent conceptions of urban growth, two models of territorial occupation—each pointing to distinct dwelling practices, either consonant with or opposed to the suggestions of local climate and culture. Reflecting the broader tensions that informed debates on verticalization in Brazil since the 1920s, this episode in the urban history of João Pessoa is distinguished by the subjection of verticalization and its imaginaries to cultural determinants that expanded the critical discourse surrounding skyscrapers and their local relevance, considered beyond economic, hygienic, or moral dimensions.
Keywords: verticalization, João Pessoa, northeastern dwelling, skyscraper, urban history
Introdução
Que Nova York e Chicago cresçam para as alturas, compreende-se: lá tudo é fácil e abundante. Aqui, é melhor continuar por baixo, pois não temos fôlego para subir.
A União, 25 fev. 1956.
Em meados da década de 1960 a publicidade de um novo grande empreendimento imobiliário circulou em jornais da cidade de João Pessoa, capital do estado da Paraíba. A princípio nada de novo ou surpreendente nisso, considerando o contexto de expansão e diversificação da produção arquitetônica local, marcada desde a década anterior pela multiplicação de edifícios verticais para moradia e serviços (Trajano Filho, 2022; Pereira, 2008). Em meio a um duplo e antitético processo de crescimento, combinando verticalização e expansão horizontal, a construção do edifício João Marques de Almeida encapsulava muitos dos sentidos de uma realidade urbana em transformação nesse momento.1 Com treze pavimentos sobre pilotis e apartamentos de três e quatro quartos, “moderno, confortável e elegante” (Edifício João Marques de Almeida, 28 de dezembro de 1965, p.8), o empreendimento da Impala Imobiliária Paraibana Ltda. diferenciava-se de seus congêneres por incorporar um conjunto de equipamentos incomum em edifícios verticais voltados à moradia na cidade, com campos de vôlei e tênis, playground e piscinas para adultos e crianças, além de incinerador de lixo e gerador próprio, essencial em uma cidade que ainda padecia de sérios problemas no fornecimento de energia elétrica. Tudo isso no “local mais aprazível da aristocrática praia paraibana” de Tambaú.2 Implantado em meio ao coqueiral que ainda caracterizava a paisagem desse trecho da capital, um último, mas aparentemente não menos importante atrativo destacado era o fato de o empreendimento estar “ao lado da residência de José Américo de Almeida” (Edifício João Marques de Almeida, 28 de dezembro de 1965, p.85).
Político, intelectual, ensaísta e romancista, autor do estudo histórico-sociológico A Paraíba e seus problemas (1923) e do romance A Bagaceira (1928), marco inicial do regionalismo literário dos anos 1930, entre outras obras; interventor federal por breve período, senador, governador e ministro de viação e obras públicas de Getúlio Vargas em duas ocasiões, José Américo de Almeida era sem dúvida a figura mais importante da vida política, cultural e social da capital, com sua influência ressoando além das fronteiras da Paraíba. Reunia, portanto, atributos mais que suficientes para justificar sua presença, ainda que estranha, nessa publicidade. Como estratégia publicitária, essa inclusão por certo buscava dirimir a resistência à moradia em edifícios verticais, explorando os anseios de distinção e elitização de segmentos abastados da sociedade, que gozariam em sua vizinhança da companhia do “solitário de Tambaú”, alcunha recebida por Almeida após se afastar da vida pública e se refugiar em sua residência solarenga com vista para o Atlântico.
Ao reunir em um mesmo espaço discursivo o arranha-céu do João Marques e a residência de Almeida, a publicidade põe em jogo dois dos principais elementos da modernização urbana em curso em João Pessoa na segunda metade do século XX, que teria justamente na fricção entre esses elementos um de seus traços característicos. Porque mais que diferenças tipológicas, o edifício alto e a casa unifamiliar encarnariam distintos sentidos sobre o que era ou devia ser a cidade na reflexão que se desenha a respeito a partir da década de 1950 (Trajano Filho, 2024). No cerne desse processo e seu disparador, estava a verticalização da capital paraibana, primeiro na área central e, ato contínuo, na orla marítima, conectada àquela de maneira mais fluída a partir de 1952 pelo eixo em linha reta da Avenida Epitácio Pessoa, obra de José Américo de Almeida quando governador do estado. Desde seus primeiros desdobramentos, com a construção dos sete pavimentos do edifício do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE), em 1949, o tema da verticalização suscitou tanto adesão quanto polêmica, com discussões acerca de seu impacto, pertinência e possibilidades impregnando o debate sobre o futuro de uma cidade cujo skyline conservava as torres das igrejas coloniais como seus elementos mais proeminentes.
Entre a história da cidade, a história da arquitetura e a história cultural urbana, o artigo percorre o período entre as décadas de 1950 e 1970 com o objetivo de discutir as distintas visões e imaginários urbanos mobilizados em torno da cidade de João Pessoa a partir do fenômeno da verticalização, com foco no trânsito entre as transformações materiais e as respostas subjetivas que provocavam. Nessas décadas, um período-chave de expansão da área urbana viabilizada pela abertura de novos eixos viários, com a verticalização avançando no centro e nas praias, o edifício alto e a casa unifamiliar consubstanciariam duas formas de pensar o crescimento urbano, dois modelos de ocupação territorial tratados por vezes como antitéticos, com a implantação de um visto como fator que inviabilizava ou dificultava a realização do outro; cada um deles apontando para modos de morar divergentes, em sintonia ou desacordo com as sugestões do clima e da cultura locais. De um lado, discursos inflamados alinhados a um desejo de mudança radical da paisagem urbana como forma de superação do passado, presente no casario colonial predominante na área central, no afã de instaurar assim uma modernidade plena materializada nos edifícios em altura. De outro, a defesa de uma urbanidade enraizada no modo de vida centrado na casa e na rua provinciana, ameaçados pelo espraiamento das “gaiolas de concreto” voltadas à moradia vertical.
Menos atento ao debate técnico especializado suscitado pela verticalização, mas sem ignorá-lo, e mais ao teor das respostas de matriz cultural que sua emergência instigou, o artigo se vale de registros diversos da imprensa diária como principal fonte, recorrendo a artigos de opinião, crônicas e colunas dedicadas à cidade e seus problemas, que se multiplicam nesse momento em jornais como O Norte e A União, de modo a se aproximar da percepção coletiva sobre a cidade e as mudanças em curso. Entre a cidade real, com sua natureza cambiante, e a cidade escrita que saltava das páginas dos jornais, havia tanto vasos comunicantes quanto particularidades irredutíveis. Ocupando diferentes espaços, essas distintas cidades coexistem sem que se esgotem uma na outra. Como diz Sarlo (2009, p. 19), “elas nunca se superpõem, não se anulam, não podem tomar o lugar da outra ou misturar seus elementos”. E ainda que a cidade escrita possa se nutrir da dinâmica histórica, social e cultural da cidade real, ela não a reproduz tal qual, operando antes a construção de um universo próprio de sentidos que se comunica, sem se restringir, às balizas impostas pela cidade real, suas demandas e limites concretos.
Figura 1. Publicidade do edifício João Marques de Almeida. A União, 1965.
Arranha-céus na paisagem
Fato curioso, o projeto e construção do Seagram Building (1954-58) despertou considerável atenção na imprensa da capital paraibana de meados dos anos 1950. Extrapolando as fronteiras disciplinares da arquitetura às quais geralmente ficam encerrados assuntos dessa natureza, em mais de uma ocasião o “arranha-céu de bronze” de Mies van der Rohe e Philip Johnson foi objeto de escrutínio em artigos de jornal, com sua complexidade, inovações construtivas e refinamento dos acabamentos expostos em detalhes, acompanhados por vezes de fotografias da maquete. Mas se, para “o mundo inteiro” e desde a realidade metropolitana de Nova York, “a cidade dos arranha-céus” (Um arranha-céu de bronze, 15 de março de 1956, p. 3), a construção do Seagram não passava de mais uma novidade diante da proliferação de edifícios altos naquela cidade, quando observado à escala local, o interesse pelos arranha-céus é revelador das questões com que se debatia a cidade de João Pessoa.
A atração exercida pelo Seagram junto à opinião pública paraibana explica-se em face das expectativas e reservas quanto às mudanças em curso na capital impulsionadas pela verticalização encetada na virada para os anos 1950. Não é coincidência que os artigos sobre o Seagram e os arranha-céus surjam na imprensa em meio às tratativas entre o Estado e o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB) para a construção de um edifício de vários pisos destinado à moradia dos seus associados (Trajano Filho, 2022).
Se da perspectiva dos entusiastas da verticalização o exemplo do Seagram representava um estímulo providencial à construção do “edifício de linha moderna e de imponente massa arquitetônica” pelo IAPB, numa esquina antes ocupada por “um velho pardieiro” (O prédio mais alto da cidade, 31 de janeiro de 1958, p. 3), para observadores mais cautelosos, o fascínio do arranha-céu nova-iorquino trazia consigo o risco da “irresponsável imprudência para a importação de conquistas alheias” (Um arranha-céu de bronze, 15 de março de 1956, p. 3), da reprodução acrítica e descontextualizada de modelos estranhos às condições concretas de intervenção. Reclamando alguma ponderação, indagava-se quanto à pertinência dessa tipologia ante a imensa disponibilidade de terra urbana nas cidades brasileiras e na capital paraibana, em particular. Em João Pessoa, o problema era outro: “tão grande é a extensão de nossas terras contínuas que já é a falta de aproximação entre seus pontos que vem merecendo as atenções dos nossos homens públicos” (Um arranha-céu de bronze, 15 de março de 1956, p. 3).
Reavivados nesse momento, tanto a denúncia do caráter imitativo quanto o questionamento dos arranha-céus em terras brasileiras constituíram argumentos recorrentes nos debates em torno do arranha-céus desde os anos 1920, simultâneo ao aparecimento dos primeiros exemplares dessa tipologia no país (Brandão, 2013; Somekh, 1997; Campos, 2002). Nacionais e estrangeiros de passagem, arquitetos ou não, seriam muitas vezes solicitados a se posicionar a respeito.
Excursionando pelo país com sua companhia teatral em 1927, o dramaturgo italiano Luigi Pirandello lançaria mão desses termos em sua oposição aos arranha-céus no Rio de Janeiro. Sem razão de ser numa “terra rica de espaço”, a opção pelos arranha-céus representava um erro profundo, injustificável e lamentável (Barbosa, 1988, p. 98). Compreensível na exiguidade territorial de Nova York, sua existência perdia sentido nas cidades brasileiras, com a proliferação desses edifícios em cidades como Rio e São Paulo constituindo antes evidentes demonstrações de artificialismo e imitação de ideias estrangeiras. Desenraizadas, portanto, da natureza em que emergiam.
Noutro registro, a natureza do Rio de Janeiro e a arquitetura dos arranha-céus compõem o arranjo poético imaginado por Blaise Cendrars para justificar sua defesa dos edifícios verticais na cidade. Antecipando-se à proposição do jogo entre arquitetura e paisagem explorado por Le Corbusier em 1929, ao projetar seu arranha-céu serpenteante entre as montanhas da capital federal, para Cendrars “a própria natureza dá o exemplo a seguir”. No Rio, a grandiosidade da paisagem praticamente impunha que os edifícios se elevassem a duas ou três vezes a altura daqueles encontrados em Nova York, sem qualquer perda à linha da paisagem: “Não seria o caso de se construir edifícios da altura do Pão de Açúcar ou do Corcovado?” (Barbosa, 1988, p. 98).
É, contudo, na enquete realizada pelo jornal O Paiz, em 1928, que se condensam os argumentos centrais da polêmica suscitada pelos arranha-céus (Chagastelles, 2022). É oportuno, por isso, elencar alguns aspectos pontuais mobilizados nessa enquete tendo em vista sobretudo o fato de ressoarem nos discursos que permearam o debate acerca da verticalização da capital paraibana nas décadas de 1950 e 1960.
Com o pano de fundo da expansão dos arranha-céus por cidades e capitais latino-americanas no decorrer da década de 1920, duas questões principais nortearam os tópicos submetidos ao grupo de arquitetos e engenheiros ouvidos pelo jornal: podia o Rio de Janeiro ter sky-scraper? Que configuração deveria assumir o arranha-céu carioca? (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 24 de junho de 1928, p 1). Para refletir acerca desses pontos, o jornal selecionou um grupo proeminente de técnicos atuantes na capital federal com distintas inserções no campo profissional, de representantes de firmas de arquitetura, como Preston & Curtis, dos estadunidenses W. P. Preston e John P. Curtis, projetistas do Hotel Esplanada, em São Paulo, a nomes como Nestor de Figueiredo, Armando de Oliveira e Lucio Costa; em uma lista da qual faziam parte também Cypriano Lemos, Gastão Bahiana, Pedro Paulo Bastos, Nereu Sampaio, Archimedes Memória, Augusto Vasconcellos, Gelabert de Simas, Cortez & Bruhns e Joseph Gire, arquiteto francês dos hotéis Glória e Copacabana Palace e, com Elisário Bahiana, do edifício A Noite (1927-29), cujos vinte e dois andares o tornaram a maior estrutura de concreto armado da América Latina por vários anos (Chagastelles, 2022).
Entre os entrevistados, o consenso apontava razões financeiras e de potencialização do uso do solo em centros urbanos adensados como fatores determinantes para a construção de arranha-céus, sobretudo em sua modalidade comercial e de serviços. Ícone da modernidade urbana capitalista, segundo Lucio Costa, o arranha-céu não seria mais que “a resultante desse nosso estado de espírito e de progresso material”. Nada surpreendente que no “século do ouro, da fortuna, [em que] os templos são os bancos, o nosso ídolo é o dinheiro, o arranha-céu [seja] a nossa catedral” (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 1 de julho de 1928, p. 4). Razão pela qual “todas as grandes cidades modernas terão fatalmente, mais cedo ou mais tarde, que aceitar em maior ou menor escala esse partido de construção” (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 1 de julho de 1928, p. 4).
O arranha-céu constituía nada mais que a resposta arquitetônica à pressão dos fundamentos da economia capitalista e da lei geral da oferta e da procura sobre as cidades e suas áreas centrais O que tornava “natural”, para Armando de Oliveira, que “o núcleo comercial se distenda no sentido da superposição dos andares” (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 17 de julho de 1928, p. 1), conforme detalhava o arquiteto Nereu Sampaio:
A lei econômica da oferta e da procura obriga ao encarecimento das locações e nesse crescendo, terrenos e edificações alcançam cifras elevadíssimas. O capital investido necessita juros compensadores e somente a multiplicação da área adquirida, em planos superpostos, resolve o problema e daí, o arranha-céu e a convicção de que ele tende a se fixar nas grandes capitais em futuro muito breve, porque as cidades já estão muito alongadas em plano horizontal”. (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 22 de julho de 1928, p.1)
Se como expressão dos valores do zeitgeist do capitalismo moderno, o arranha-céu não conhecia barreiras em sua expansão, como constatavam muito dos entrevistados, restava em aberto a justa consideração dessa tipologia em relação à diversidade de geografias, climas e culturas com que é levada a se defrontar em seu espraiamento mundo afora. “Se a topografia, a vida, o clima, os costumes de cada cidade são tão diferentes, como pode um só tipo de construção servir a todas elas?”, indagava-se o engenheiro Augusto Vasconcellos. Indicado em algumas situações por “resolve[r] perfeitamente o problema” (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 15 de julho de 1928, p. 1), noutras os prejuízos advindos de sua adoção podiam ser consideráveis.
Figura 2. Projeto de arranha-céu do arquiteto Nestor de Figueiredo ilustrando edição da revista Movimento Brasileiro (1929). Acervo digital Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
Era preciso sopesar sua opção em vista das vantagens e desvantagens que apresentava. Questões de salubridade, de insolação e ventilação, dificuldades de evacuação em caso de incêndio e a congestão criada pela concentração de atividades e pessoas listavam-se entre os aspectos negativos da construção de edifícios de grande altura. E mesmo que esses problemas fossem contornáveis com a imposição de limites de gabarito, que se refletiriam em benéficos à higiene e à estética urbana, permanecia, no entanto, a resistência ao arranha-céu enraizada na denúncia do seu caráter genérico e universal, e o risco que implicava de perda de atributos paisagísticos das cidades brasileiras. Tanto é que, mesmo admitindo que o arranha-céu fosse pertinente a qualquer ambiente em que se mostrasse necessário, Armando de Oliveira não considerava este o caso do Rio de Janeiro:
No Rio atual ainda não existem razões que determinem a existência do verdadeiro arranha-céu nem mesmo na sua zona comercial, onde o terreno ainda não atingiu preços tão altos, nem se observa uma tal escassez de escritórios ou aluguéis excessivos. (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 17 de julho de 1928, p. 4)
Para os que se opunham ao arranha-céu, mesmo validando sua necessidade em determinadas situações, não havia justificativas para a existência de arranha-céus no Rio. Nem no centro, onde já se multiplicavam de forma indiscriminada e com alguns resultados sofríveis, como demonstrava o conjunto de edifícios erguidos na Cinelândia; nem em bairros em acelerada transformação como Copacabana, onde as “massas enormes dos arranha-céus” (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 15 de julho de 1928, p. 1) também se espalhavam, impregnando a paisagem natural com tons cinzas do concreto armado.
Monstros, paquidermes de concreto, corpos estranhos perturbadores da paisagem que deviam ser considerados um crime imperdoável, a recusa ao arranha-céu amiúde fincava-se em matrizes também culturais, como a ideia de uma singularidade específica a cada contexto, e, com recorrência, a abundância de solo urbano como um contraponto à necessidade de sua construção. Sobretudo no Rio, com “áreas enormes ainda por construir” (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 15 de julho de 1928, p. 1), além do agravante da topografia acidentada e da conformação irregular da cidade. “Deixemos os arranha-céus para a América do Norte e procuremos construir a nossa cidade sem prejudicar a beleza natural da qual foi dotada” (O arranha-céu e o Rio de Janeiro, 15 de julho de 1928, p. 1), concluía Vasconcellos.
Sem atributos paisagísticos comparáveis ao Rio, também na capital paraibana a construção de edifícios em altura dividiria opiniões, instigando percepções distintas sobre a cidade e seu desenvolvimento futuro. Rompido o limiar de edificações de três pavimentos com a construção do IPASE, as décadas de 1950 e 1960 veriam um incremento no ritmo de construção de novos imóveis com múltiplos pisos (Pereira, 2009).
A princípio voltada a atividades institucionais, comerciais e serviços, a verticalização foi de saída saudada como prova de uma cidade que tinha pressa em se modernizar e assumir feições metropolitanas, como uma engrenagem fundamental na “tarefa de retirar da mataria rasteira uma cidade moderna, dotada de todos os requisitos essenciais à vida civilizada” (Leal, 1952, p. 4). Com os arranha-céus, a época dos “prédios de aspectos passadistas e do tipo pigmeu” estava superada, era coisa do passado. O futuro cobiçado se anunciava na era do “gigantismo arquitetural” (Leal, 1952, p. 4) e sua realização demandava celeridade. Não bastava pôr abaixo velhos pardieiros que atravancavam o progresso em uma esquina qualquer. Outras tantas esquinas ainda ocupadas por “casinhas de minguadas proporções” ofereciam oportunidades para novos empreendimentos.
O parâmetro legal a nortear esse processo, dirigindo mesmo iniciativas de verticalização para setores específicos da capital, foi organizado no novo código municipal de 1955 e em um conjunto de leis subsequentes, aprovadas no decorrer da segunda metade dessa década. No contexto de expansão urbana no rumo das praias e mudanças estruturais no núcleo consolidado, esse aparato buscava imbuir de normas baseadas em critérios técnicos o planejamento da cidade e, no tocante à verticalização, operou de modo tanto a regulamentar quanto a estimular seu desenvolvimento. Assim, ao mesmo tempo que disciplinava o uso de equipamentos como elevadores, oferecia incentivos à construção de edifícios em altura na forma de isenções fiscais (Pereira, 2009).
Abrangente ao perímetro urbano como um todo, o código municipal receberia leis complementares pensadas para canalizar a verticalização para logradouros específicos da região central, como as ruas Duque de Caxias, Visconde de Pelotas, avenidas Guedes Pereira e Barão do Triunfo, e as praças Vidal de Negreiros, João Pessoa e 1817. Trecho urbano de maior efervescência econômica e construtiva nesse momento, esses logradouros foram objeto de atenção particular da Lei municipal 440, de 25 de janeiro de 1957, que proibia a construção de novas edificações com menos de três andares. Na proposta original apresentada sob a forma do projeto de Lei 181, de 30 de agosto de 1956, definia-se um escopo bem maior em relação ao número de logradouros abrangidos. Além do entorno das praças Pedro Américo, Aristides Lobo e Venâncio Neiva, incorporava algumas das vias de conexão com a região do Varadouro, na cidade baixa, como a avenida Miguel Couto e as ruas Cardoso Vieira e Barão de Triunfo (Pereira, 2009; Trajano Filho, 2022).
Ao instituir um patamar mínimo tão baixo, a lei logo foi considerada demasiado acanhada para induzir a verticalização. Inspirado pelo exemplo do edifício para o IAPB, passou-se a reclamar a criação de uma nova lei municipal que proibisse qualquer edifício com menos de oito pavimentos no entorno do Ponto de Cem Réis, como era popularmente conhecida a praça Vidal de Negreiros. Fazendo às vezes de sala de visita da capital, depositária do que “de melhor podemos apresentar no aspecto urbanístico”, que impressão se queria sugerir da cidade aos visitantes a partir desse lugar tão significativo? Era preciso evitar a todo custo a imagem de uma “rua banguela com uma arcada dentária desfalcada de alguns dentes”, resultado do “contraste entre arranha-céus e pequenos sobrados” que se fazia notar em áreas centrais de outras cidades, dotando o centro urbano da capital de um conjunto homogêneo de edifícios verticais (Novos edifícios, 30 de novembro de 1958, p. 3).
Mais que timidez, a legislação adotava uma atitude realista frente ao potencial limitado de investimento disponível por agentes privados para inversão na construção de edifícios em altura. Ao se manifestar contrário à aprovação do projeto de Lei 181, que delimitava um perímetro ampliado para a proibição de edifícios com menos de três pavimentos, o vereador Abdias dos Santos Passos, da Comissão de Obras Públicas, seguia essa linha argumentativa. Sem desqualificar o mérito da proposta, pensada em benefício do “embelezamento da nossa capital”, o vereador justificava sua posição em vista do “ínfimo número de capitalistas (...) e a impossibilidade econômica e financeira de nosso povo” em relação à abrangência inicialmente projetada, “uma área territorial de tamanho tão extenso que representa quase toda estrutura do centro urbano de nossa cidade”.
Somente depois de decorrido um período de cem anos é que talvez, pudéssemos ter tamanha e extensiva área ocupada por prédios do feitio exigido pelo projeto em alusão, o que certo traria, no curso de elevado espaço de tempo, grandes prejuízos aos cofres do nosso município, uma vez que ficaria preterida grande parte de nossa cidade à construção de prédios de menor altura. (Passos, 1956)
Não à toa, as poucas edificações privadas construídas nesse período que ultrapassavam aquele patamar eram destacadas como ações modelares merecedoras de incentivos públicos, medida essencial para “apressar a remodelação da cidade no seu ponto central, onde só lentamente vão sendo substituídas as casas térreas por prédios de vários pavimentos” (O prédio mais alto da cidade, 31 de janeiro de 1958, p. 3). Tal era o caso do edifício construído no Ponto de Cem Réis pela empresa Tecidos Cardoso & Cia, “uma grande contribuição ao aspecto urbanístico desta capital, impondo uma nova linha arquitetônica que vem dominar os estilos decadentes e sem gosto das antigas construções do tipo sobrado”. Uma iniciativa exemplar a ser emulada por outras firmas com a construção de “edifícios novos nos pontos ocupados por casebres que não se acham à altura do moderno Ponto de Cem Réis” (João Pessoa urbaniza-se, 8 de julho de 1958, p. 6).
Arranha-céus em ruas provincianas
A construção dos cinco pavimentos para escritórios e lojas do edifício Nações Unidas (1957), rompendo o gabarito mínimo estabelecido na região central, coincidiu com a apresentação do projeto do edifício Presidente João Pessoa, destinado a moradia de associados e serviços da autarquia. Embora se debatessem formas de induzir a verticalização desde os anos 1940, e na década seguinte tenham se definido normativas nesse sentido, a construção deste edifício funcionaria como um incremento na polêmica acerca da verticalização.
Por certo a destinação do edifício, para uso residencial, em uma cidade onde o padrão de moradia dominante era formado por casas unifamiliares e uns poucos sobrados nas ruas mais antigas, tenha reavivado no imaginário local reservas quanto à habitação vertical, manifestadas já quando do aparecimento dos primeiros edifícios de apartamentos nas décadas iniciais do século XX. Reservas enraizadas na frequente associação desses edifícios com formas de vidas coletivas estigmatizadas, como casas de cômodos, cortiços e outros modos de morar tidos como amorais, promíscuos e insalubres, e que, por isso mesmo, constituíram o alvo preferencial da política higienista de modernização e embelezamento em muitas cidades brasileiras naquele período.
Ainda que exagerada, a ideia de um “horror generalizado pela habitação coletiva” (Vaz, 2002, p. 85) incutiu preconceitos arraigados de larga difusão na sociedade, inexistentes ou abrandados quando os edifícios em altura tinham outras destinações que não a função residencial. Ao se voltar para esse uso, os arranha-céus haviam arrasado tudo, “casa, higiene, beleza, bom senso...”, nas palavras do arquiteto Gerson Pompeu Pinheiro (Pinheiro, 1936, p. 33). Haviam destruído a própria integridade da família. O autor dessa catástrofe, o arranha-céu, constituía o verdadeiro “o trapiche da mercadoria humana...”, na crítica do jornalista Carlos Maul:
Nele a luz é escassa, a temperatura é de ar frigorífico, os compartimentos estanques. Não há como alojar em tais baiúcas mais de três pessoas (...). Tudo minúsculo, reduzido, porque o terreno é caro e porque é mister utilizar as áreas sem desperdício de um milímetro. E como estas teratologias arquitetônicas se multiplicam ao infinito, o animal humano que não prescinde do auxílio da natureza vai procurar em outra parte o que lhe falta no domicílio. (Maul apud Vaz, 2002, p. 96)
Sem paralelo com essa condenação dos edifícios de apartamentos como espaços de perdição moral, outros argumentos de ordem prática também seriam evocados em juízos quanto à disponibilidade de meios materiais e tecnológicos para viabilizar um modo de vida nas alturas equiparável aos lares tradicionais, além de serviços urbanos condizentes com o adensamento provocado pela verticalização.
Repercutindo a fala do engenheiro Francisco de Sá Lessa, prefeito do Rio de Janeiro por um brevíssimo período, e crítico da “mania brasileira dos arranha-céus”, um dos artigos publicados na capital paraibana pelo jornal A União discutia as dificuldades infraestruturais das cidades brasileiras em responder às demandas introduzidas pelos arranha-céus. Em questionamento estava a capacidade das cidades em fornecer adequadamente água, luz e gás a “prédio[s] de dez, de quinze, de vinte e mais andares” (Arranha-céus, 25 de fevereiro de 1956, p. 3). De fato, essa dificuldade se constatava em crônicas e colunas diárias afeitas aos problemas urbanos da capital na década de 1950, denunciando a falta de condições do Estado em “cobrir toda essa área enorme com uma rede condutora de energia ou construir os esgotos exigidos” (Problemas da cidade, 24 fevereiro de 1954, p. 2), numa cidade que se expandia acumulando problemas no fornecimento de energia elétrica, abastecimento d’água e saneamento.
Ao planejar sua construção, ninguém pensa nisso e o resultado é transforma[r] em verdadeiro inferno a existência dos habitantes dos arranha-céus. Que adianta, realmente, morar num belo edifício, se falta o banho diário, se a televisão não funciona ou o elevador emperra por insuficiência de energia, se o fogão não se acende por não haver combustível?” (Arranha-céus, 25 de fevereiro de 1956, p. 3)
A despeito dos problemas de infraestrutura urbana apontados, comuns à João Pessoa como um todo, que convivia ainda com “trechos onde se vive em meia escuridão” (Problemas da cidade, 26 de fevereiro de 1955, p. 2.), e sobretudo à região das praias, carente em grande parte de saneamento, de meados dos anos 1950 e em ritmo crescente nas duas décadas seguintes, a verticalização se impôs, alterando de vez a silhueta urbana da capital.
Com predomínio de escritórios, serviços e edifícios institucionais para bancos e órgãos da administração pública, na área central são construídos prédios para o Banco da Lavoura (1963), do arquiteto Álvaro Vital Brazil, e Banco do Brasil (1971), as sede da Reitoria da Universidade Federal da Paraíba (1963), junto ao parque Solon de Lucena, projeto do arquiteto Leonardo Stuckert Fialho, e do INPS (1966), de Adauto Ferreira; o edifício Régis (1964), de dezesseis pavimentos, na esquina em frente ao IPASE, no Ponto de Cem Réis, e o complexo arquitetônico do Centro Administrativo Integrado (1973), de Tertuliano Dionísio. Ao mesmo tempo, vários edifícios para fins habitacionais por empreendedores privados são implantados em ruas e avenidas mantidas fora do alcance da legislação implantada para estimular a verticalização, como as avenidas João Machado, que recebe os edifícios Cadeno e Nossa Senhora de Lourdes, dos arquitetos sediados em Recife, Delfim Amorim e Heitor Maia Neto, ambos de 1967; e Getúlio Vargas, onde são erguidos o portentoso edifício Caricé (1964), com 14 pavimentos e 117 apartamentos, e o Santa Rita (1964), com nove andares sobre pilotis (Pereira, 2009).
Figuras 3 e 4. Verticalização em processo no centro da capital paraibana: entornos do Ponto de Cem Réis e Parque Solon de Lucena (Década de 1960/70). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE).
É, contudo, junto ao mar que a expansão de edifícios de apartamentos é mais expressiva, seja para fins de moradia permanente ou uso eventual em finais de semana e veraneio. Apenas na década de 1960 são projetados e construídos os edifícios Borborema (1962), com onze pavimentos, o João Marques de Almeida (1965), o São Marcos (1967), do arquiteto Mário Glauco Di Lascio, com onze pavimentos, e o Beiramar (1968), com dez pavimentos, todos entre os bairros de Cabo Branco e Tambaú. Sinal das mudanças em curso na relação entre o núcleo urbano consolidado e as praias, facilitada pelos melhoramentos realizados na avenida Epitácio Pessoa no começo dos anos 1950, a construção de moradias verticais na orla indicia transformações profundas na forma como a cidade passa a se ver e a ser vista.
Pressionando modos de vida próprios a uma cidade essencialmente horizontal, com a relação entre casa e rua qualificando o cotidiano e a vivência em sociedade, a “progressão geométrica de blocos residenciais” (Moreira, 1956, p. 2) alimentou o ânimo dos partidários da modernização acelerada, ao mesmo tempo que despertou resistência. Inclusive naqueles trechos em que a verticalização foi sempre induzida e considerada como um índice de cobiçada modernidade.
Quando em 1968 se cogitou a construção de um arranha-céu de trinta andares junto ao Ponto de Cem Réis, com financiamento de diversas instituições financeiras, numa iniciativa a princípio vista “com muito bons olhos” pela população (O arranha-céu, 8 de agosto de 1968, p. 3), a miragem que envolvera a realização do edifício Presidente João Pessoa, do IAPB, uma década antes, se fez novamente presente. Como se tal feito “por si só nos coloca[sse], a todos e cada um, dentro de uma cidade melhor aquinhoada nos seus requintes de urbanismo e de prosperidade” (O arranha-céu, 8 de agosto de 1968). Miragem que, por óbvio, elidia inconvenientes urbanos de várias ordens relacionados a um empreendimento desse porte, e ocultava verdades desconfortáveis: “arranha-céus não implicam, necessariamente, em progresso real de qualquer cidade. Monumentos, ou se preferirmos, fachadas, não querem indicar prosperidade geral, nem muito menos bem-estar geral” (O arranha-céu, ainda..., 9 de agosto de 1968, p. 3).
Ao contrário, nas condições de inexistência de uma economia forte e desenvolvida, numa cidade como João Pessoa, “onde nem sempre a dona de casa tem onde comprar tomates para a sopa e o subemprego não teve solução”, a construção de um arranha-céu configurava antes um “paradoxo do progresso” (O arranha-céu, ainda..., 9 de agosto de 1968, p. 7). Como que a acentuar a natureza desse paradoxo, além da fragilidade financeira em vista dos recursos que a construção de arranha-céus implicava, “coisa que [só] poderia andar com alguma normalidade” em metrópoles como São Paulo, estava a própria tendência de crescimento horizontal da cidade nas duas décadas anteriores, com diversos setores sendo transformados por iniciativas públicas e privadas voltados à moradia unifamiliar, num espraiamento da mancha urbana facilitada em grande parte pelo amplo estoque de terras de que dispunha a capital.
Sem estar imune aos efeitos de uma modernização que avançava a golpes de picaretas, João Pessoa conseguia equilibrar as perdas provocadas pelo progresso com a permanência de atributos próprios, não “recai[ndo] na modorra, nem na renovação apenas cenográfica, [nem numa] renovação para caixeiro-viajante” (Batista, 1962, p. 6). Para o escritor e jornalista Juarez da Gama Batista, entre o ceticismo e a resistência aos processos abruptos de mudança, João Pessoa, “uma cidade de província”,
tem sabido harmonizar paisagem e formas de vida, novidade, modernidades autênticas, sem descambar para o cinematográfico, para a cópia de revistas ou cartões postais de propaganda dos grandes centros de outros países. (Batista, 1962, p. 6)
Na “refrega entre o progresso e as coisas que o passado opõe a sua marcha” (Custou, mas saiu, 6 de maio de 1956, p. 2), o que estava em jogo era a delimitação de um caráter da cidade a ser preservado na voragem do tempo da modernização, da alma da cidade, em suma, que não sendo imune a mudanças, se alterava segundo o tempo lento de um urbanismo moroso, “preguiçoso, desestimulado...” (Duarte, 1989, p. 19), e não avassalador, acomodando o existente com o adventício. Produto não de um progresso artificial e estranho à ordem estabelecida, mas de um progresso natural, livre das “arrancadas cegas de modernidade” (Batista, 1962, p. 6).
Em contraponto à miragem de cidade moderna condensada nos arranha-céus, afinal falsa, um outro imaginário urbano tomava forma à medida que a verticalização se normalizava. Ancorado na evocação de uma outra cidade, tão idealizada quanto aquela miragem, moldado por uma sensibilidade nostálgica e orientado ao passado mais que ao futuro, no cerne desse outro imaginário estava um conjunto de sentidos identificados com um modo de vida e uma urbanidade provincianos, sintetizados na relação tradicional entre a casa e a rua. A casa unifamiliar, não os apartamentos. Não qualquer rua, não a rua moderna, metropolitana, mas a rua provinciana, tal como esta emerge retratada nas crônicas de Juarez Batista do começo dos anos 1950.
O recurso à rua provinciana como metáfora de uma outra cidade, no momento em que a fisionomia urbana da capital adquiria feições metropolitanas, disparava aproximações com a escala e um ritmo de vida comezinhos, mas historicamente densos, supostamente mais genuínos e mais conectados à natureza, representada na imagem do “coqueiro preguiçoso, que oscila majestosamente” (Batista, 1952, p.3).
Minha rua provinciana tem mais de trezentos e tantos anos de arrogância, na sua fria indiferença. Foi, em tempos esquecidos, a rua, ela, a única. Hoje, é apenas uma transversal. Poderia perguntar à maneira Ascenço Ferreira: ─ Cadê teus sobrados? Cadê tua nobreza, teu orgulho, teus ananases de platibanda, teus bacharéis de fraque (...)? E ouço-a responder: ─ A rua Direita passou no papo. Passou no papo, primeiro, a rua Direita. Depois foi o Tambiá. Depois, Trincheiras. E sucederam-se Montepio, Rua São José, Praça do Carmo, Rua da Palmeira, Torre, Jaguaribe, Roggers, Poço, Tambaú. E a minha rua foi distribuindo a sua vida e a sua grandeza. Hoje é rua transversal. Trancou-se nas suas lembranças. Talvez nas suas amarguras. Talvez em nada. Apenas não liga. (Batista, 1952, p. 3)
Indissociável dessa compreensão, estava a crítica aos utilitarismos parasitários e aos artificialismos, ou seja, todas aquelas práticas, modismos e manifestações alheios ao que se idealizava como sendo a cidade de João Pessoa com sua carga histórica secular, sua paisagem, cultura e costumes. Desprovidos de autenticidade, esses utilitarismos e artificialismos que a modernização introduzia de forma célere na vida urbana traíam a natureza da cidade, seu caráter. De distintas formas, esses elementos seriam mobilizados em um discurso de recusa ao modelo de cidade e sociedade identificados com a verticalização e o morar em altura, exemplos por excelência de um artificialismo inautêntico, num horizonte de rápida proliferação das “fachadas agressivas de concreto armado” (Leal, 1953, p. 4) e da multiplicação das “gaiolas de concreto” (Crescimento horizontal, 18 de janeiro de 1962, p. 3).
Em mais de uma ocasião vista como um fator de arrefecimento dos ânimos mais exaltados e destrutivos da modernização, a fragilidade econômica da capital comparecia nos discursos comprometidos em afirmar a impertinência da verticalização. “Justamente por não ser uma cidade industrial, nem empório comercial”, João Pessoa teria se esquivado de “condições e novidades em estilos de vida nem sempre ‘modernos’ ou ‘atuais’”. E mesmo os erros que se notava, produto quer da ação do Estado, quer da ação de particulares, “preocupados em imitar [o que] os outros têm de pior ou mais inadequado ao nosso país, ao nosso clima, à nossa paisagem, aos nossos costumes”, seriam poucos e de pouca monta, “talvez porque pouco se tenha feito” (Batista, 1962, p. 6).
A esse fator, somava-se outro, já um lugar-comum na crítica aos arranha-céus no Brasil: a vastidão de espaço existente para um crescimento horizontal de baixo custo e mais orgânico, no sentido de ser próximo aos modos de vida estabelecidos, centrados na moradia em residências unifamiliares. Diante do que a cidade apresentava, talvez o melhor fosse mesmo “continuar por baixo” (Arranha-céus, 25 de fevereiro de 1956, p. 3). Sem “nenhuma necessidade de procurar as alturas” (Crescimento horizontal, 18 de janeiro de 1962, p. 3), o destino manifesto da capital encontrava vazão e sentido “na obrigação de explorarmos terras, de crescermos, como se diz em linguagem técnica, horizontalmente” (Crescimento horizontal, 18 de janeiro de 1962, p. 3).
Figura 5. Vista aérea mostrando, em primeiro plano, o Parque Solon de Lucena e, em linha reta, a avenida Epitácio Pessoa seguindo em direção às praias (Década de 1950). Acervo Humberto Nóbrega.
Vista assim, a expansão da verticalização não só depunha contra a natureza da cidade, como obstava seu desenvolvimento natural, no sentido da ocupação horizontal do espaço. Porque, traduzindo em equação matemática os dilemas do planejamento urbano entre capital e disponibilidade de solo, a cada construção de um edifício de dez ou mais pavimentos “diminui a expansão da cidade em centenas de metros, assim como a possibilidade de abertura de novas avenidas, ruas e grupos residenciais” (Crescimento horizontal, 18 de janeiro de 1962, p. 3).
Cidade necessitando de expandir-se horizontalmente, dominando terrenos imensos para o oceano ou para o sul do município, prefere, pela estupidez das companhias imobiliárias ou critérios de instituições públicas federais, procurar os céus, quando a terra é vasta e devoluta. (Crescimento horizontal, 18 de janeiro de 1962, p. 3)
Dragando recursos por si escassos em uma economia pobre, favorecia-se um modelo de concentração e adensamento no espaço em detrimento da dispersão no largo território à espera para se converter em cidade. Um modelo, ainda por cima, artificial, cuja adoção deixava às claras a sujeição, tipicamente periférica, da capital em relação aos grandes centros, sempre pronta a imitar Rio ou São Paulo. A novidade da vez era a imitação da “mania americana dos prédios tipo ‘caixão de cimento’ [esses] terríveis monstros a dominar os ares cheios de apartamentos tipo gaiolas” (Crescimento horizontal, 18 de janeiro de 1962, p. 3).
Coqueiros à beira-mar e casas “nordestinas”
Despropositados quando analisados da perspectiva da economia urbana, os edifícios em altura tampouco correspondiam às condições do clima quente e úmido de uma capital nordestina. Nada mais gritante da evidente inadequação desses edifícios em termos ambientais à ecologia local do que edifícios com “fachadas liliputianas, todas fechadas de vidro como se especialmente planejadas para climas glaciais” (Arquitetura, 16 de março de 1957, p. 3). Como agravante aos problemas ambientais, com poucas exceções os edifícios com mais de três pavimentos, conforme denunciava um raivoso artigo d’A União do final dos anos 1960, ignoravam as “mais preliminares regras de higiene”. Reincidindo na crítica à insalubridade que acompanha a história dos arranha-céus, o artigo fornecia detalhes grotescos de edifícios na área central da cidade, surpreendidos “demasiados sujos, alguns com excrementos até pelas escadarias, cuspo misturado com sangue de dentes extraídos nos gabinetes de dentistas e manchas suspeitas de todas as origens (...)” (O arranha-céu, ainda..., 9 de agosto de 1968, p. 3).
Em contraponto aos equívocos econômicos, ecológicos e higiênicos identificados com a verticalização, apontava-se como alternativa uma cidade horizontal, de baixa densidade e dispersa, à escala de casas unifamiliares. Bucólica e imersa na natureza, os atributos dessa cidade evocavam a atmosfera urbana condensada na figura da rua provinciana. Não imitativos, sedimentados no tempo longo da história urbana e, portanto, mais naturalmente ecológicos e regionalmente ambientados, os nexos profundos entre a casa e a rua constituíam o núcleo da ideia de morar nordestino, a ser protegido do avanço das “gaiolas de concreto”. Aceitáveis até no máximo quatro pavimentos, além disso os edifícios verticais constituiriam uma verdadeira “aberração arquitetônica”, com danos à vida em sociedade e à paisagem:
Não temos necessidade de gaiolas de arranha-céus. O município de João Pessoa, por exemplo, caberá dez, vinte vezes a população com suas casas isoladas de jardins e quintais. (...) Dentro de uma lógica cretina, estamos desprezando o espaço geográfico, para conquista do crescimento vertical. (Crescimento vertical, 23 de fevereiro de 1969, p. 3)
Contaminando a paisagem urbanística do Nordeste com sua intrusão infundada, nos arranha-céus perdia-se um modo de vida caracterizado pela “liberdade de espaço ao homem nordestino”, propiciada pela amplitude do território, sob risco de desaparecimento pela “imposição artificial” da indústria da construção (Crescimento vertical, 23 de fevereiro de 1969, p. 3). Essa liberdade era elevada à categoria de fator de distinção entre esse homem nordestino e aqueles que viviam nos “grandes centros sulistas”, prisioneiros, mecânicos e emparedados em seus apartamentos, vivendo engaiolados em metrópoles “como macacos em jaulas, a fitar horizontes sem poder alcançá-los” (Crescimento horizontal, 18 de janeiro de 1962, p. 3)
O sulista sempre nos invejou, e era um orgulho nordestino, a vida ampla sem horizontes, nos meios de casas isoladas, humildes ou mansões de ricos, mas todas em contato com a paisagem e o vegetal, onde as crianças brincam sem perigo ao lado dos animais domésticos, diretos com a natureza. (Crescimento vertical, 23 de fevereiro de 1969, p. 3)
O edifício de apartamentos constituía nada menos que um insulto à cultura do modo de vida provinciano e nordestino, seus costumes, cotidiano e sociabilidade. Pois, “impróprios à atividade pública”, esses edifícios eram igualmente “nocivos à vida doméstica”. Contrastando com a habitação vertical, tida como típica dos grandes centros sulistas, o diferencial dos nordestinos seria o cultivo da esfera doméstica em “residências térreas, ajardinadas e muradas, além do quintal onde se plantava mamão e outras fruteiras” (Crescimento vertical, 23 de fevereiro de 1969, p. 3). Só nessas condições para se desfrutar de uma “vida ampla sem horizontes”, numa “cidade natural por sua arquitetura e paisagem” (Crescimento vertical, 23 de fevereiro de 1969, p. 3).
Figuras 6 e 7. Palhoças e casas modernas na praia de Tambaú (Cabo Branco atualmente) nas fotografias de Tibor Jablonsky (1957). IBGE.
Figura 8. Vista aérea de parte da orla de João Pessoa em processo de ocupação nos anos 1950/60. IBGE
Embora se dirigisse, de forma genérica, à verticalização como um processo abrangente à cidade como um todo, a crítica a esse processo emerge com força no contexto da expansão dos edifícios altos junto às praias, em rápida mudança de lugar de veraneio para lugar de moradia definitiva na segunda metade do século passado. Ocupada até os anos 1950 basicamente por uma população ligada à pesca e ao cultivo de frutas para comercialização na capital, áreas como Cabo Branco e Tambaú tinham nos coqueiros, árvores frutíferas, choças, mocambos e palhoças seus elementos característicos, em meio a uma natureza luxuriante potencializada pela geografia acidentada das falésias em direção ao sul.
Não apenas essa população original seria aos poucos substituída por moradores que deixavam o núcleo urbano consolidado para construir residências permanentes junto às praias, como o perfil desses novos moradores diferenciava-se bastante dos antigos. Profissionais liberais, médicos, advogados, políticos, como José Américo de Almeida, e outros segmentos da elite local construiriam casas espaçosas em lotes generosos naqueles bairros que, em paralelo, eram invadidos por edifícios verticais dirigidos a parcelas da classe média e alta da capital e do estado. Não parece ser coincidência que o discurso contra os arranha-céus se estruture com mais clareza nesse momento, sem conseguir esconder um indisfarçável viés de classe em sua formulação.
Pois, por um lado, esse discurso que defendia a paisagem e a sociabilidade de base tradicional e provinciana, remetendo a uma noção muito específica e enviesada de Nordeste, tributária de uma mitificação da vida, do homem e da sociedade de base regional fundada no pensamento do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (Trajano Filho, 2024), denunciava a sanha capitalista de construtores para os quais modos de vida, paisagem e cultura constituíam obstáculos ao progresso e a uma modernidade mal compreendida. Por outro, as sugestões de uma ordem social harmônica, em que pobres e abastados asseguravam seu direito a um morar imerso na natureza, usufruindo em igualdade das benesses de um viver nordestino, numa projeção idílica de um mundo social sem conflitos, mal dissimulava seu caráter conservador, ignorando a abissal desigualdade vigente na realidade de um país subdesenvolvido na periferia do capitalismo.
No começo da década de 1960, quando a construção de edifícios altos na cidade de João Pessoa se expandia, o cronista e fotógrafo Walfredo Rodriguez publica o Roteiro sentimental de uma cidade (1962). Sem negar as perdas acumuladas no tempo, Rodriguez dedica várias passagens a construir a ideia de um mundo infenso a alterações e mitificado em sua estaticidade, imutabilidade e genuinidade, em que um senso de harmonia regia o arranjo social. Um mundo e um tempo em que a “pacatez natural, sem afetação”, imperava e “onde tudo se resolvia a contento de todos”, sem “essa cópia caricata de costumes, tomados de empréstimo à vida de outras gentes”, completamente distintos dos que dias que corriam, “cheios de utilitarismos parasitários do nosso sentimento” (Rodriguez, 1962, p. 47). O momento da escrita do livro já não se tratava de um tempo em que se pudesse contemporizar com o progresso. Os “lentos cabriolés” haviam ficado no passado e as ruas provincianas davam lugar a avenidas tomadas por “vertiginosos ‘rabos de peixe’” e por edifícios que subiam aos céus. Esse era o tempo que corria. Esse era o tempo da “decadência atual”, segundo o vaticínio do jornalista José Leal (Leal, 1953, p. 4).
Ainda que não diretamente atrelando-se aos discursos sobre a cidade naquele momento, é impossível não reconhecer nessas passagens algo da inspiração do idílio nordestino imaginado pela crítica à verticalização. Tão vã na sua eficácia quanto a nostalgia de Rodriguez, a crítica à “lógica cretina” (Crescimento vertical, 23 de fevereiro de 1969, p. 3) que impulsionava os edifícios para o alto, ainda que enviesada, teve o mérito de introduzir elementos fundamentais na reflexão acerca da capital paraibana, sobretudo ao acentuar a necessidade de relacionar o habitar com o habitat, a cidade com a paisagem.
Figura 9. Praia de Tambaú com edifícios verticais despontando na paisagem de coqueiros e casas. IBGE.
Conclusão: a verticalização em aberto e o futuro da paisagem (e da cidade)
No final de 1968, são entregues aos moradores os apartamentos do edifício João Marques de Almeida, “único no Nordeste com piscina privativa” (Outra vez em primeiro lugar, 20 de dezembro de 1968, p. 3). Ironicamente, a façanha de um edifício de treze pavimentos junto ao mar, materializada pelo João Marques, não se repetiria. A visão da sua lâmina moderna imponente em meio a casas, prédios de baixa altura e coqueiros perduraria em sua condição solitária. E perdura, ainda hoje, embora a realidade atual pressione continuamente por mudanças. Único de sua espécie em altura, condição semelhante à do João Marques seria reservada para outros empreendimentos imobiliários lançados na segunda da década de 1960, com sua construção prolongando-se até o começo da década seguinte. O São Marcos, Beiramar e Borborema, todos implantados junto à orla e com dez ou mais pavimentos, também se conservariam como os últimos exemplares de arranha-céus erguidos nas praias de Tambaú e Cabo Branco.
À medida que esses edifícios subiam, a resistência contra sua construção junto às praias se acentuava. Aceitáveis e mesmo vistos como necessários na região central da cidade, sob o argumento da falta de terrenos disponíveis para construção em meio ao crescimento do comércio e serviços nessa área, o caso mudava de figura quando se tratava de sua implantação nas praias. Aí, a construção de arranha-céus tornava-se uma excrescência, “um excesso”, como se via em Tambaú. “Praia de beleza rara, que não tardará muito a tornar-se uma fonte de riqueza para a cidade que deve orgulhar-se de tê-la” onde proliferavam “edifícios de apartamentos, em busca do céu [com] pelo menos uma meia dúzia deles já exist[indo] e alguns com mais de dez andares” (Proteção a Tambaú, 28 de dezembro de 1969, p. 3).
Ainda no nosso ponto de vista é um outro absurdo, pela obrigação que temos de preservar um recanto como aquele e isto não se dará se o poder público municipal continuar permitindo a construção de arranha-céus. É indispensável preservar a ventilação e proteger o coqueiral. Este, aliás, devia vir sendo renovado, porque a verdade é que tem sofrido muito abalo e não se sabe de um replantio. (Proteção a Tambaú, 28 de dezembro de 1969, p. 3)
Sem que seja coincidência, o teor dessa fala, reclamando a necessidade de uma lei municipal que pusesse “termo a essa expansão desordenada”, encontraria resposta na forma de um conjunto disperso de normativas que na virada para os anos 1970 estabeleceriam regulamentações para construções junto à orla, culminando na inclusão de uma emenda à Constituição do Estado da Paraíba, de 1967, relativa ao tema, pelo governador João Agripino (1967-1971). Sobrepondo-se à autoridade do munícipio, além de vedar a construção de edifícios com mais de dois pavimentos na avenida costeira, abarcando todas as praias da capital paraibana de norte a sul, de praia de Formosa, no atual munícipio de Cabedelo, a praia do Seixas, ao sul, a emenda de 16 de junho de 1970 tornava patrimônio histórico da Paraíba o Cabo Branco e a praia do Seixas, pontos mais orientais das Américas, caracterizados pela beleza natural de suas falésias (Pereira, 2009).
Consolidada em definitivo com a nova constituição de 1989, essa normativa praticamente impôs o fim do ciclo de verticalização na orla da capital paraibana. Um fato raro e pouco replicado que acabou por se tornar um atrativo turístico desde os anos 1970, quando o turismo se torna o motor da economia de uma capital sem indústria forte, de um estado com economia de base agrária. É nesse contexto de iniciativas públicas voltadas ao incentivo do turismo como fonte de receita econômica que se insere a construção do Hotel Tambaú (1968), a partir de projeto do arquiteto carioca Sérgio Bernardes (Pereira, 2008).
A proibição à construção dos “espigões”, como são popularmente conhecidos os edifícios verticais, e a preservação de um gabarito de baixa altura junto às praias, tornaram-se característicos da capital paraibana, seu diferencial em termos urbanos, frente ao que se processou noutras capitais nordestinas como Recife e Fortaleza. Nos últimos anos, em meio às ocorrências de booms econômicos inerentes à lógica neoliberal, pressões crescentes vêm questionando essa legislação e conseguindo ganhos consideráveis em potencial construtivo, ameaçando por pôr terra décadas de uma tentativa que, embora nem sempre consistente, adquiriu legitimidade como recurso válido na defesa do “direito à paisagem natural” como um valor a ser coletivamente usufruído.
Uma face desse processo ganha plena visibilidade no investimento midiático atual, tanto público quanto privado, de difusão da imagem da capital paraibana como destino turístico e de inversão imobiliária. Campanhas publicitárias pródigas em alardear a tranquilidade hospitaleira, o clima e a paisagem que tornariam singular a experiência de vida na capital paraibana. À medida que esse processo avança, ele assume a feição implacável e prenhe de problemas da “cidade que se vende”. Nesse modelo, a base material que constitui seu principal ativo, ou seja, a paisagem natural preservada, costuma ser o primeiro elemento a ser descartado, facilmente transposto sempre que percebido como empecilho ao lucro, lícito ou não. Frente a isso, sem ignorar as contradições de classe e de visão de mundo que atravessaram a polêmica em torno da construção de edifícios altos nas praias, é legítimo e fundamental afirmar, diante da “lógica cretina” que nunca esteve tão ativa e poderosa como agora, que “João Pessoa não está à venda” (Tavares, 2025).
Notas
1 Evidências da transformação em curso entre as décadas de 1950 e 1970, esse período encerra tanto um rápido crescimento populacional quanto um desdobramento acentuado da mancha urbana da cidade de João Pessoa. A população de 120 mil habitantes em 1950 atingiria 220 mil duas décadas depois. Ao mesmo tempo, a área ocupada cresceria tanto em direção às praias, seguindo o eixo da avenida Epitácio Pessoa, quanto ao sul-sudeste da capital. Na década de 1960, em particular, a expansão horizontal seria impulsionada pela implantação de grandes conjuntos habitacionais populares, como a cidade dos Funcionários e, ao final dessa década, a primeira etapa do conjunto Castelo Branco, nas imediações do campus da Universidade Federal da Paraíba, que passaria a funcionar como um forte vetor de atração do crescimento urbano ao sul da capital nas décadas de 1970 e 1980. Uma síntese desse processo é fornecida por Silva, et al. (2016).
2 Até a década de 1970, as praias que hoje são conhecidas por Cabo Branco e Tambaú compunham uma única faixa litorânea chamada apenas de Tambaú. Em sua localização atual, o João Marques está implantado em um lote frente ao mar na atual praia de Cabo Branco, vizinho à residência de José Américo, convertida desde os anos 1980 na sede da Fundação Casa de José Américo de Almeida.
Agradecimento
Grande parte do material de base a este artigo, assim como algumas das ideias sobre as quais se estruturou, devem-se a conversas e à generosidade do professor e pesquisador Fúlvio Teixeira de Barros Pereira, estudioso da arquitetura e dos processos urbanos da capital paraibana no século XX. Embora a escrita e o uso final do material tenham se sujeitado ao norte analítico do autor, o artigo deve muito ao Fúlvio, que devia muito bem constar como coautor não fosse sua modéstia descabida. Assumindo que os erros e equívocos do artigo em sua forma final decorrem fundamentalmente de decisões e deficiências do autor, fica aqui registrada a enorme dívida para com ele.
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Francisco Sales Trajano Filho
Arquiteto, Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. Professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. Avenida Trabalhador São-Carlense, 400, Centro 13566-590, São Carlos SP, Brasil.
sales@sc.usp.br
https://orcid.org/0000-0003-3594-6878
Recibido 16 de outubro de 2025 Aceptado 27 de novembro de 2025 Publicado 1 de diciembre de 2025
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